sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

RELATOS PARKINSONIANOS 3 - O CÉREBRO É UM SENHOR DE ENGENHO

Explico o título: no tempo do Brasil colônia, quando a escravidão era considerado algo "normal", os maiores donos de escravos eram os chamados "senhores de engenho" os fazendeiros, e comumente eles eram terríveis para quem estava sob seu jugo. Era comum, não só nas fazendas, mas em todos os lugares, existirem pelourinhos, que nada mais eram do que  postes cravados no chão, onde o escravo era amarrado e ali era açoitado muitas vezes até a morte. Havia toda espécie de tortura e ai do escravo que não obedecesse e em muitos casos, nem era preciso o pobre cometer qualquer deslize para ser penalizado. Ele poderia ser apenas uma válvula de escape para o seu senhor desferir, por prazer, uma ira qualquer.

Assim sou eu: o corpo inteiro me pertence, todas as células são minhas escravas e posso fazer com elas o que em me aprouver. Quem pode manda e quem tem juízo, obedece.
É claro que ocorrem rebeliões; muitas células fogem e formam quilombos, outras deixam-se morrer por não suportar a escravidão.
A minha "fazenda", ou a caixa (melhor dizendo, a bola, pois sou redonda) não é grande, como voces já sabem, porém é feita de osso e embora pareça muito resistente, na verdade não é. Está sujeita a ataques externos que podem causar grandes ferimentos, além de ter que lidar com células revoltadas que podem provocar doenças mortais ou deixar sequelas terríveis. No fundo, sou  um ser muito delicado.
Não sou sempre mau. Uma parte de mim é muito boa, dá ao sujeito todas as condições de ter uma vida ótima. Nem sempre sou um carrasco, mas confesso, sou voluntarioso e o que é pior, não tenho nenhuma chefia a quem dar satisfações. Só quem pode comigo é Deus, e olhe lá.
Muitos dos estragos que eu provoco com a minha tirania, ainda têm causas bem obscuras. É o caso por exemplo, de doenças como o Alzheimer, como a Ela, como o Parkinson, entre centenas de outras.
Claro que existem alguns fatores predisponentes, mas em geral, a causa real ainda é desconhecida.
Como já disse antes, as células se reúnem revoltadas, fazem um motim e decidem fazer greve; simplesmente param de trabalhar. Lógico que existem sindicatos, formados por médicos, os chamados neurologistas e em algumas ocasiões eles conseguem bons acordos trabalhistas, porém em outros, não há negociação, nem a força de um chicote que faça os neurônios voltarem a ativa. Eles preferem morrer a tornar a me obedecer. É o caso, por exemplo, das doenças que citei acima.
Posso mandá-las para o pelourinho, nada adianta, elas simplesmente se deixam morrer e deixam ao abandono a senzala em que moravam. Esses lugares ficam vazios, perdem a serventia, pois não há mais ninguém para fazê-los funcionar.
É o que acontece com muito incautos. Existe uma área dentro de  de mim,que é muito elegante. Ela segue à risca a regra de que toda mulher necessita de um "pretinho básico" em seu guarda roupa para ser chic. Pois então, vejam voces como eu posso se bondoso: eu criei um espaço que denominei como "substância negra". Não dei apenas um vestido, dei um armário inteiro e também conferi aos seus moradores o poder de comandar toda a parte de motricidade dos indivíduos, desde que eles produzissem um produto chamado "dopamina". Fui tão benevolente que deixei o trabalho pesado, ou seja, fazer com que o corpo pudesse se movimentar (sempre sob o meu comando, é óbvio) para a dona "dopa". Aos neurônios cabia apenas a função de procriá-las, coisa pouca, nem se pode  comparar a uma gestação, os neurônios não têm enjôos, sono fora de hora e muito menos ficam barrigudos.
Tarefinha moleza. Mas a ingratidão atinge a todos, indistintamente. O fato é que as células da substância negra resolvem fazer greve, provavelmente de fome, pois começam a se degenerar e a morrer. Na verdade são umas egoístas, pois não pensam que com isso vão prejudicar e muito, a pessoa que lhes dá abrigo.
Creio tratar-se de um suicídio coletivo, lento e gradual. Penso que entre elas deve haver alguém que deseja ser um Tim Jones, aquele que tinha uma seita, nos Estados Unidos e que levou 900 pessoas a se matarem, em 1978, lembram?
Pois é, a medida em que vão morrendo vão afetando uma parte do corpo, que deixa de funcionar a contento.
De início atingem geralmente a parte motora do corpo, mas com o passar do tempo pode até levar à perda de memória e à demência e por fim, à morte porque até os músculos responsáveis pela respiração decretam falência.

Existem hipóteses para esse ato tresloucado, como por exemplo, a hereditariedade (embora segundo estudos, não seja ela a grande responsável), influências do meio ambiente, exposição a produtos tóxicos, como inseticidas ou herbicidas.
Claro que há um batalhão de choque, me atreveria a chamá-lo de BOPE, comandado pelo capitão Nascimento que luta bravamente para encontrar a cura ou pelo menos terapias que retardem a sua progressão, mas ainda falta muito caminho para ser percorrido. Voces já sabem, sou um ser repleto de mistérios, de incógnitas, não permito que invadam tão facilmente a minha privacidade. Então ainda há muito a ser estudado.
Já se sabe por exemplo que essa doença, que também pode ser chamada de "mal" ou "paralisia agitante" e foi descrita pela primeira vez em 1817 por James Parkinson, daí o seu nome. Eu heim? Eu é que não queria uma homenagem dessas!
Não existe prevenção, portanto, caros colegas, todos estamos sujeitos a desenvolvê-la.
Num conceito mais digamos, bonito, dir-se-ia que: " a doença de Parkinson é uma disfunção dos neurônios secretores de dopamina nos gânglios da base do cérebro, que controlam e ajustam os comandos conscientes vindos do córtex cerebral. Não somente os neurônios dopaminérgicos estão envolvidos no processo, mas também outros que produzem a serotonina (por isso é muito comum a depressão), a noradrenalina e a acetilcolina".
Como todo conceito acadêmico ou científico é meio complicado de se entender, por isso, traduzindo em miúdos, o fato de não haver mais dopamina faz com que o indivíduo perca a coordenação motora, apresente tremores, tenha dificuldade para andar, apresente rigidez muscular, o que compromete também as articulações e aos poucos, torna o indivíduo incapacitado para realizar as atividades mais simples, como amarrar um sapato, por exemplo.
Óbvio que a criatura entra num processo depressivo imenso. Muitos perdem completamente a vontade de viver.
Lembro que meu pai, quando teve o diagnóstico confirmado, olhou para mim e disse: "filha, sou um homem morto"! Mas isso não ocorreu de pronto. Ele foi um guerreiro, não se entregou, não deixou de trabalhar e até mesmo de dirigir, o que era na realidade, um perigo. Minha mãe se recusava a andar com ele de carro. Mesmo quando ele despencou de um morro e ficou preso entre as árvores, ainda assim ele recusou veementemente a ajuda de um motorista.
Tenho certeza do amor de meu pai pelos filhos, assim com creio piamente que ele não desejava esse destino para nenhum de nós, mas infelizmente, na roleta russa que é a vida, foi em mim que o revólver disparou sua única bala.

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