De certa forma nós estávamos presas. Minha mãe, eu, as vezes um irmão, ou um parente, em torno de todos nós havia barras de uma cela imaginária que nos encarceravam. Nossos corpos podiam sair, comer, dormir, mas nossos espíritos estavam presos naquela UTI.
Tentávamos tudo o que podíamos para parecer pessoas normais, mas acho que todos tinham vontade de sair correndo por aquelas avenidas sempre congestionadas, gritando e se perguntando o porquê daquele sofrimento, se meu pai merecia, se nós merecíamos, se era justo e sobretudo, onde andava DEUS. Muitas vezes me peguei fazendo esta pergunta, mas é óbvio, não existia uma resposta para nada. A única resposta é que por causa de um médico incompetente, meu pai estava morrendo.
Quando pensava nisso mais crescia em mim um sentimento de revolta. Que médico era aquele que sequer consentiu em nos receber, que largara tudo e viajara e principalmente, o que mais me doía era saber que eu havia ajudado a salvar tantas pessoas, minimizado tantas dores alheias e agora nada eu podia fazer.
Muito tempo depois, até mesmo depois de meu pai ter morrido, ficamos sabendo que o caso repercutira tanto que até profissionais de outros grandes hospitais de São Paulo sabiam e acompanhavam o que se sucedia. Não fora só um erro, fatalidades podem acontecer, os médicos são também humanos e são passíveis de falhas, mas o "médico" que operou meu pai, além de incompetente, era um covarde, pois quando se deu conta da barbárie que havia cometido, arrumou suas malas e fugiu. Porém não havia fuga para nenhum de nós. O máximo que conseguíamos eram alguns momentos de indulto, quando fingíamos que nada estava acontecendo e saíamos, íamos até o shopping, fazíamos umas compras, almoçávamos. Eram momentos raros, mas importantes para que nos sentíssemos vivas, pois quando percebíamos que a vida continuava, conseguíamos arranjar um pouco de energia para enfrentar mais um dia.
Antes que minhas férias chegassem ao fim minha mãe foi até Blumenau. Havia assuntos, problemas a serem resolvidos. Junto com a bagagem, jamais esquecerei a cena, ela levava consigo o bacalhau, aquele que ele havia comprado no Mercado Municipal, para ser feito no Natal.
Naqueles dias em que fiquei sozinha, não fazia nada, saía apenas para tentar comer e ir ao hospital. Estava emagrecendo, já não tinha uma roupa que me coubesse. Perdi dez quilos em um mês. Eu é que parecia doente.
Não havia um só dia em que não saísse do hospital, cruzando aquela rua que parecia um mercado árabe, em que não chorasse. Como era verão chovia praticamente todos os dias na cidade. Grandes temporais aos finais das tardes, alagavam tudo e eu ia andando naquela água imunda, sem nem pensar no risco que corria. Eu estava encharcada por fora e por dentro só cabia a lembrança dos olhos do meu pai, sempre abertos, me olhando e querendo entender. Ninguém, mas ninguém mesmo poderia me provar que ele não sabia quem eu era ou que não soubesse ou pelo menos tivesse uma leve noção do que lhe acontecera.
Eu travava com ele um monólogo, contava-lhe quem havia telefonado, quando a mãe voltaria, como estavam suas cachorrinhas, como havia sido o jogo do Corinthians, numa tentativa insana de lhe trazer a realidade. Nunca chorava ao lado dele. Tinha muito tempo para fazer isso depois de cruzar a porta de saída da UTI.
Enfim voltei para Blumenau, precisava trabalhar, mas logo voltaria pois o natal estava muito próximo e eu teria uns dias de folga.
Havíamos mudado de apart, o que estávamos hospedadas tinha aumentado muito as diárias. Perto dele também havia uma padaria, aliás, o que não falta em São Paulo é padaria. Comprávamos ali nossos alimentos e foi ali que assaram nosso peru, no dia de natal. Sim, uma parte de minha família foi para lá e fizemos uma pequena ceia e um brinde com champagne, todos voltados par o hospital que podíamos enxergar de longe. Brindamos com a vã esperança que no natal seguinte ele estivesse junto, mas sabíamos que isso nunca mais aconteceria, só não falávamos, guardávamos essa certeza a sete chaves em nossos corações, se é que ainda tínhamos um.
No dia seguinte, quase não pude ver meu pai, como sempre, havia algo acontecendo dentro da UTI. Mas eu precisava vê-lo, iria embora naquela noite, por isso me colei ao chão e não arredei os pés dali até me permitirem a entrada.
Encontrei um farrapo humano jogado sobre uma cama, sujo, com a barba por fazer, sufocando com a secreção acumulada na traqueostomia, a roupa de cama manchada de sangue.
Abracei-lhe como pude e segredei em seu ouvido: "pai, daqui a alguns dias estarás em casa, eu te prometo, te levarei embora deste inferno".
Saí dali e orientei minha mãe quanto aos trâmites que ela precisaria fazer: providenciar uma alta a pedido, contratar um avião com UTI, médicos e enfermeiros e voar para Santa Catarina.
Enquanto lá em São Paulo ela tomava as providências, eu em Blumenau, com todo o apoio do Hospital Santa Isabel, tomava as minhas.
No sábado, dia 29 de dezembro, com toda a família reunida no aeroporto de Navegantes, vimos o pequeno avião pousar. Meu amigo e enfermeiro chefe da UTI, Jarbas, havia ido comigo para acompanhá-lo na ambulância da Unimed. Nem perguntei se podia, fui andando pela pista, cheguei perto do avião e o vi deitado na maca. Segurei-lhe as mãos e disse:"não te prometi? estás em casa".
Tive certeza que seu olhar para mim foi de alívio.
Uma hora depois ele já estava sendo recebido pela enfermagem da UTI do Santa Isabel e pelas mãos carinhosas de minha colega Ivania. Quando retornei, após o almoço, encontrei outro paciente. Limpo, perfumado, com os curativos feitos, já tinha recebido a visita da minha amiga e fisioterapeuta Celize. Dormia. Acho que foi a primeira vez em muito tempo que ele dormiu em paz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário