As visitas eram sempre as dezesseis (?) horas. Saíamos então do apart, subíamos a passarela e começávamos o caminho do inferno.
A rua em frente ao hospital mais se assemelhava a uma grande feira. Havia de um tudo para se comprar: calcinhas, sombrinhas, bolsas, bolachas, refrigerantes e yogurte, que era vendido em sacos plásticos e cujos restos lavavam o asfalto, deixando um cheiro azedo no ar quente do começo do verão.
Entrávamos então e íamos direto a um local para nos cadastrar. Ali, desde o início, ficamos sabendo que para podermos continuar as visitas era preciso providenciar vinte litros de sangue. Ficamos atônitas, afinal não conhecíamos ninguém em São Paulo, exceto o primo de meu pai. E nem que tirassem todo o nosso sangue, jamais supriríamos a quantia seria solicitada.
O telefone do hotel tocava a todo instante, as pessoas não paravam de ligar para saber como nós estávamos e numa dessas ligações, conversei com minha chefe, e o Hospital Santa Isabel, sem que nós soubéssemos providenciou uma campanha de doação e informou ao Hospital das Clínicas que já dispunha do sangue necessário. Ficou acordado entre as duas instituições que um comprovante seria remetido para São Paulo e o sangue usado em Blumenau. No dia em que soubemos disso, choramos de emoção e agradecimento ao Hospital Santa Isabel enquanto preenchíamos nossas fichas para podermos entrar na UTI. Foi um dos primeiros, entre muitos atos do Hospital onde eu trabalhava. Jamais terei palavras suficientes para agradecer tudo o quanto foi feito por nós.
Depois de preencher as fichas, começávamos uma jornada entre paredes e rampas de concreto. A sensação era de estarmos entrando em outra dimensão. Tudo ao nosso redor era cinza, com pouca luz e antes de chegarmos à UTI éramos revistadas, tínhamos que esvaziar nossas bolsas e bolsos para provar que não estávamos levando comida para o paciente. Era uma situação surreal, visto que era um setor onde os pacientes estavam inconscientes, geralmente entubados, com sondas enterais e que portanto, não tinham condições de deglutir nada.
Certo dia fiquei tão irritada que perguntei para o funcionário que nos revistava e que já nos conhecia, pois a esta altura meu pai já estava há quase um mês internado, se ele pensava que na minha bolsa eu levava uma marmita com uma feijoada.
Então, após essa última barreira. caminhávamos por um longo corredor e logo avistávamos, lá no fundo, um aglomerado de pessoas que também iam ver seus parentes.
Não havia sequer uma cadeira, uma janela. Muitas vezes, como já relatei, ficávamos horas ali em pé, compartilhando nossas dores em conjunto. Em algumas ocasiões alguém recebia a noticia que seu parente havia falecido; era sempre um momento de grande comoção. Nós também tínhamos esse medo.
Quando enfim a porta da UTI se abria, alguém era chamado para entrar e ali mesmo recebia um relatório sucinto de como estava o seu doente.
Nós, invariavelmente recebíamos as mesmas informações: "não houve melhora no quadro neurológico". Se não havia melhora, havia no entanto piora no estado geral. Meu pai há muito estava com traqueostomia, respirando por aparelhos, sondado. Fomos informadas que ele havia contraído uma infecção hospitalar e as escaras já haviam começado.
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Fiquei louca, queria matar aquela enfermeira japonesa, antipática e seca. Sabia que as escaras são lesões que ocorrem em consequência de muita pressão sobre determinada área do corpo. O sangue então não circula por ali, os tecidos necrosam e se formam feridas horríveis.
Quando meu pai deu entrada na UTI, era um homem ainda nutrido, hígido e as escaras aconteciam por falta de cuidados da enfermagem. Um paciente acamado permanentemente necessita ser mudado de posição pelo menos a cada duas horas, a higiene deve ser rígida e apoios devem ser colocados nas regiões mais suscetíveis. Mas ali nada disso era feito. Como as mãos de meu pai não se movimentavam e ele as mantinha fechadas como conchas, até nas palmas das mãos haviam escaras porque o polegar pressionava a área.
Quando questionei com a enfermeira como aquilo podia estar acontecendo, recebi uma resposta grosseira e fui informada que precisava comprar um colchão extrapiramidal, daqueles de espuma que parece com uma caixa de ovos. No dia seguinte, após uma extenuante peregrinação de ônibus e a pé, consegui encontrar a loja que haviam me recomendado e comprei o colchão, mas agora o estrago já estava feito.
Meus irmãos estavam indo para lá, pois eu fazia aniversário no final de novembro. De alguma forma queriam comemorar um pouquinho, fazer um teatro de que a vida continuava em seu ritmo normal.
Eu estava fazendo trinta e nove anos e não houve "parabéns prá você". A minha festa foi regada à lágrimas derramadas sobre o peito de meu pai, que me olhava com os que olhos agora, devido ao aumento da pressão intracraniana, pareciam saltar das órbitas. Mas sei que ele sabia que data era aquela, pois ele também deixou correr umas lágrimas, e acreditem foi o meu melhor presente, pois ali, naquele instante tão breve, soube que meu pai ainda tinha momentos de lucidez.
Minhas férias estavam terminando, em breve teria que voltar para Blumenau e deixar minha mãe sozinha, então antes de ir, criamos coragem e fomos ao setor onde meu pai havia ficado internado antes da cirurgia para pegar seus pertences.Colocamos tudo em uma sacola: pijamas, livros, o seu boné, produtos de higiene e saímos daquele quarto com a certeza de que jamais meu pai voltaria a ser o que era. Caminhamos por um pátio interno e ali então, de braços dados, choramos. Choramos muito, mais do que já havíamos chorado desde que ele entrou em coma.
Meu pai não era mais uma "pessoa". Era um ser que vivia apenas porque respirava com a ajuda de aparelhos, cuja carne apodrecia e o cérebro era agora um órgão praticamente inativo, que havia sido machucado e não existia mercúrio cromo ou band-aid que fechasse aquela ferida. Ela ficaria aberta até sua morte.
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