Dezoito de novembro de 1997. Em Blumenau, meus tios, minha filha e eu almoçávamos numa comemoração dupla, o aniversário de minha tia e a cirurgia de meu pai.
Entre nós havia uma mistura de alegria e tensão. Os celulares ainda não eram muito comuns, era o início do seu aparecimento, sendo assim, eu só poderia ter alguma notícia do que havia ocorrido naquela manhã, em São Paulo, quando chegasse em casa, após o almoço.
Mal pisei em casa, peguei o telefone e liguei. Logo percebi, pela voz de minha mãe, que algo não estava bem.
- Ana Luiza, não sei o que aconteceu com o pai. Ele veio bonzinho do centro cirúrgico, falando, contando que durante todo o procedimento tocava música e ele não tremia mais. Só que de repente ele começou a reclamar de frio e foi ficando sonolento. Eu o chamava, tentava acordá-lo, mas ele não respondia, então chamei a enfermagem, as enfermeiras fizeram várias coisas para reanimá-lo, apertavam o osso do peito com os nós dos dedos, prá ver se ele acordava,mas nada, ele parecia morto. Então o levaram para a UTI.
_ I! mãe, deu merda! O pai entrou em coma.
Do outro lado da linha uns segundos de silêncio e depois um choro incontido. Acho que ela só entendeu que eu iria para São Paulo no dia seguinte.
Telefonei para todos: irmãos, tios, amigos. De repente meu apartamento ficou cheio de gente.
Tentei falar com a UTI do Hospital das Clínicas, mas ninguém quis me informar nada. Apelei então para a diretora do Hospital Santa Isabel, com a qual eu tinha mais do laços profissionais, nos conhecíamos desde crianças e então por seu intermédio fiquei sabendo que meu pai entrara em coma porque durante a cirurgia, romperam um vaso, extravasou sangue pelo cérebro.
De modo mais simples, era como se meu pai houvesse sofrido um derrame.
Ainda não sabiam o tamanho do estrago, estavam em exames, precisávamos aguardar. Tínhamos acabado de entrar num pesadelo, que nem Salvador Dali seria capaz de retratar nem em seu quadro mais surrealista.
Agora vou ter que ser um pouquinho acadêmica para poder explicar com clareza a cirurgia a qual meu pai tinha se submetido, que se denomina estereotaxia. Como isso é feito?
Primeiro raspam os cabelos do paciente e sob anestesia local fazem um pequeno orifício no crânio, de mais ou menos um centímetro, chegando até o cérebro. Tudo é monitorado por imagens obtidas através de tomografia ou ressonância magnética. É com o auxílio desses aparelhos que o cirurgião consegue localizar o local lesionado, que como já disse antes, fica na substância negra.
Então se introduz uma agulha de biópsia ou de punção até o local onde os neurônios estão em processo suicida. Inicia-se uma estimulação elétrica nas três estruturas que formam a substância negra: o tálamo, o globo pálido e o núcleo subtalâmico.
A estimulação elétrica, de alta frequência resulta na perda de excitabilidade das células, ou seja levam-nas as funcionar normalmente para que haja um controle da motricidade.
Durante todo o procedimento, o paciente permanece acordado. É ele quem vai relatando como está a intensidade dos tremores.
Com o meu pai foi um sucesso. Ele parou de tremer. Só que , não sei se por incompetência, descaso, negligência, durante e introdução da agulha um vaso sanguíneo foi perfurado, não sei se uma veia ou uma artéria e o sangue começou a se espalhar.
Até hoje não consigo entender como os médicos não se deram conta do que estava acontecendo. Estava tudo ali, numa tela de um tomógrafo, qualquer uma veria que que o cérebro estava sendo invadido por uma enchente de sangue.
Poderiam ter fechado aquele vaso, poderiam ter drenado o sangue, assim evitariam a hemorragia que se alastrava, evitariam o coágulo que posteriormente se forma, não haveria um hematoma e a consequente morte daquela região.
Mas nada fizeram. Tão pouco explicaram com clareza para minha mãe, ou para mim. Só a sabiam dizer que meu pai sofrera uma hemorragia, que estava em coma e que era necessário esperar para ver se o sangue seria naturalmente absorvido pelo tecido cerebral.
Quarenta e oito horas depois, eu já em São Paulo, a situação não havia mudado. Houve sim, um aumento da pressão intracraniana e era necessário a colocação de uma válvula no cérebro, ligada a um catéter que levasse aquele sangue represado embora.
Lembro tão bem que este procedimento estava sendo feito à noite e da janela do corredor do hotel em que estávamos podíamos visualizar o Hospital das Clínicas. Ficamos todos ali, rezando, esperando que nossas preces atravessassem a muralha de prédios em volta e chegassem até meu pai. Mas elas não chegaram, ficaram pelo caminho, talvez presas num daqueles engarrafamentos monstruosos que ocorriam todos os dias.
Só iríamos saber o resultado no dia seguinte, era norma do hospital não dar informações pelo telefone. Aliás, o hospital tem tantas normas que acredito que uma delas proíbe o médico de falar com a família. Jamais vi a cara do médico que operou meu pai. Lembro que se chamava Salomão, porém não me recordo o sobrenome. Ele se recusou a nos atender e em seguida viajou para os Estados Unidos.
Meu pai ficou então nas UTI neurológica, nas mãos de um residente japonês, mais frio e distante que o Polo Norte.
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