Lá pelo início dos anos 1990, com meu pai recém entrando na casa dos sessenta anos, começamos a perceber uma mudança em seus movimentos.
Eu não morava com eles, estava presente apenas nos finais de semana, mas me chamou muito a atenção o tremor, ainda de forma leve que ele apresentava no braço e principalmente na mão direita.
Não era tão ostensivo que chamasse a atenção. Era mais perceptível à mesa, os talheres dançavam até chegarem com a comida em sua boca.
Passou-me pela cabeça que poderia ser Parkinson, mas ainda era um tremor muito discreto, mais semelhante à falta de coordenação que é muito comum nas pessoas mais idosas. Mas meu pai não era "velho", mal tinha se tornado um sexagenário. Mesmo já tendo se passado quase trinta anos e a expectativa de vida tenha aumentado consideravelmente, meu pai, de modo nenhum poderia ser considerado um idoso clássico.
Era um homem ativo, tinha um profundo amor pelos esportes; sua vida era dedicada aos Jogos Abertos, amava o basquete e creio que nessa época já não era mais um representante comercial que havia vivido nas estradas desde que me lembro por gente. Envolvido com o mundo esportivo, embora não praticasse nada além de um pouco de "bocha" e dominó, tinha mais uma função burocrática e foi sem falsa modéstia, uns dos maiores responsáveis pela hegemonia blumenauense nas competições
Durante muitos anos trabalhou de graça em prol dos esportes.Costumava dizer que "um atleta a mais era um drogado a menos". Tinha uma dedicação incansável e extremamente afetuosa com a atividade.
Sempre fora carismático, não havia quem não gostasse dele. Simpático, falante, apesar de pouco estudo formal, era bastante culto, lia muito e era extremamente religioso. Gostava muito de ir à missa e o fazia quase todos os dias. Certa feita, perguntaram à minha mãe se ele havia se tornado padre;Também era homem bonito.Era alto, magro,( tudo bem, já tinha uma discreta barriguinha), os cabelos sempre penteados para trás da cabeça e cuidadosamente mantidos com Trim,mas apesar disso era extremamente simples.
Um paradoxo, meu pai. Na verdade nunca pude lhe compreender totalmente.Jamais admitiu que éramos, como vou dizer sem parecer metida, ricos. Muito pelo contrário, na sua concepção, éramos pobres.Nossa casa nunca foi luxuosamente decorada, para ele uma mesa e um banquinho eram mais que suficientes. Se não fosse por minha mãe, acho que teríamos vivido em choupanas e para ele estaria bom. Contrariamente a isso, apreciava de forma intensa a boa gastronomia e nossa casa mais parecia um supermercado, aliás, lugar onde ia quase todos os dias. Sempre tivemos uma mesa farta, não só em quantidade, mas sobretudo, em qualidade. Azeites importados, queijos idem, carne? praticamente só se comia filé mignon. Imaginem que havia na nossa cozinha, duas geladeira sempre lotadas, mais um freezer abarrotado, fora armários e uma despensa atulhada. Muitas vezes minha mãe tinha que jogar fora os alimentos, pois eram tantos e assim impossíveis de serem consumidos, muitos passavam do prazo de validade.
Costumava ir sempre a São Paulo e lá, seu lugar preferido era o famoso Mercado Municipal, onde tinha um fornecedor exclusivo do melhor bacalhau, por sinal, um de seus pratos preferidos e muito bem preparado pela minha mãe.
Ao mesmo tempo em que vivíamos nessa Babel gastronômica, e astronômica, pois nunca regateou ou reclamou quanto aos gastos exagerados que fazia com comida, não era homem de outros luxos, e nos ressentíamos pois raramente viajávamos, segundo ele, não tinha dinheiro para isso.
Mas nada faltava para nós: boas escolas, boas roupas, belas jóias para minha mãe, empregadas, motorista, temporada de mais de dois meses na nossa casa de praia, nas férias de verão, bons carros. Era viciado em Opala, um carrão para a época. Já para nós, os filhos, sempre Fusca e fazia questão que logo ao fazermos dezoito anos, tirássemos carteira de habilitação.
Também apreciava bons vinhos, mas não desdenhava de um de um vindo de garrafão, daqueles de se fazer quentão no inverno. E bons uisques.
Aos domingos de manhã, gostava de se sentar na varanda ou em sua poltrona para assistir programas esportivos, acompanhado por por algum aperitivo e acepipes como queijos ou azeitonas gregas.
Embora nunca tenha ocupado algum cargo público (só quando já aposentado assumiu a diretoria de Secretaria Municipal de Esportes), era um homem "público" Todos, em Blumenau o conheciam, era impossível sair com ele, parava a cada instante para falar com alguém, parecia ser um político e muito insistiram para que se candidatasse ao cargo de prefeito, mas sempre declinou do convite. Não nascera para a política, pelo menos, não a oficial. Sua política era muito particular e jamais ele se veria envolvido em maracutaias para tirar proveitos financeiros. Era por demais honesto.
Tinha gosto musical eclético, mas foi com ele que aprendi a apreciar música clássica, ópera e balé.
Ao mesmo tempo, era fã do Gaúcho da Fronteira e hoje não posso ouvir o "Canto Alegretense" sem me deixar levar pela saudade.
Não costumava ir ao cinema. Quando mais moço sim, depois do advento da televisão, que aliás fomos uma das primeiras famílias a ter uma, e sobretudo com a chegada do vídeo cassete, passou assistir filmes em casa. Amava Charles Chaplin e seu filme preferido era Derzu Uzala Assistiu-o diversas vezes e sempre se comovia.
Não me lembro de jamais ter visto meu pai bêbado, às vezes em alguma festividade, passava um pouquinho dos limites, mas nunca deu vexame, pelo contrário, geralmente se tornava hilário.
Fumou até enfartar aos cinquenta e poucos anos, precocemente. Enfarto severo, raro, sem a dor comum que o precede. Enfartou de emoção, dentro de um ginásio de esportes numa final de um jogo de basquete nos Jogos Abertos de Itajaí, em 1985.
Foi operado em São Paulo e levou a sério as recomendações médicas: nunca mais colocou um cigarro na boca, caminhava todos os dias, sua alimentação tornou-se mais regrada. Era consumidor compulsivo de azeite de oliva, que hoje sabe-se faz muito bem.
Depois que voltou de São Paulo, com uma dieta específica no bolso, passou a consumir músculo; era a carne recomendada pela nutricionista. Minha mãe não gostava muito de prepará-la e nem nós de comê-la, mas durante um bom tempo ela fez parte do nosso cardápio, até que um dia, nunca se soube a razão, ele chegou para o almoço, olhou para a travessa da carne e mandou que fosse retirada da mesa. Recusou-se terminantemente a comer e desde então proibiu que fosse consumida lá em casa.
Por mais que perguntássemos qual o motivo da repulsa, jamais ele nos disse. Graças aos céus, voltamos ao filé mignon.
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