segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

RELATOS PARKINSONIANOS- 7-O COMEÇO DA DURA ROTINA

Ontem fez dezessete anos que meu pai descansou. Durante mais de um ano ele sofreu, nós sofremos e víamos, dia a dia qualquer resquício de melhora, ir-se embora.
De informação concreta, o que realmente consegui do médico japonês que o atendia é que ele estava em "coma vigil", estado vegetativo, onde o cérebro não possui mais função voluntária, só sobra a parte automatizada, abrir e fechar os olhos, dormir e acordar.
Como já sabemos que o cérebro é muito complexo, é um estado que tem mais perguntas que respostas, mas existe a certeza que a pessoa não tem consciência plena do que está lhe acontecendo. mesmo a dor  é sentida como um estímulo.
Existem alguns casos em que ocorre uma reversão, mas nem sempre o paciente sai deste quadro. Em palavras mais simples, estar em coma é estar numa fronteira muito tênue, entre a vida e a morte.
Se há um lugar no mundo que eu não desejo ver jamais e muito menos frequentar é o Hospital das Clinicas. Sei que é um hospital referência, sei que é o maior da América Latina, conheço suas capacidades, seus recursos. Tenho certeza de que muitos pacientes graves que ali são internados voltam à vida. Como enfermeira, fui treinada a manter uma certa frieza em relação aos pacientes.
De fato, somos obrigadas a um certo distanciamento, sob pena de acabar por ficarmos doentes da alma. Hospital é sinônimo de sofrimento. Mas de alguma forma, procuramos manter em nossos íntimos um certo nível de humanidade, de compaixão. Não importa o tamanho do hospital ou de quantas pessoas são atendidas ali diariamente. É preciso não perder de vista jamais que o paciente é um ser humano, não uma máquina, não um número fixado num leito.
Entendo o ritmo de vida dos paulistanos, mas não há justificativa para tanta indiferença. Nós não éramos nada.Éramosatendidos em quase todos os lugares com gentileza, menos no hospital e acho que aquela secura se estendia também aos pacientes, não somente à família.
 Após o choque inicial, ficamos somente minha mãe eu em São Paulo. Saímos do hotel em que estávamos e nos mudamos para um flat em frente ao hospital, bastava atravessar uma passarela para se abrir a porta do inferno.
Não lembro com exatidão quantos minutos podíamos ficar ao lado de meu pai.
Mas não esqueço nenhum dos procedimentos a que tínhamos que nos submeter para poder vê-lo, isso quando conseguíamos, pois muitas vezes a UTI estava atendendo algum caso de maior importância e assim não permitia visitas, mesmo que essas visitas fossem para um filho, que essas mães tivessem enfrentado  verdadeiras viagens de horas para verem seus entes queridos.
Sei que às vezes realmente ocorria um caso muito grave: um paciente precisando ser entubado, ou estar sendo submetido a uma manobra para reverter uma parada cárdiorespiratória. O que não entendia era o porquê de resolverem dar banho em algum paciente bem na hora da visita. O banho era sempre a desculpa favorita deles e eu ficava me perguntando se eles não conheciam algo tão simples como um biombo. Abriam a porta e claro nos deixavam esperançosos, para dizer após uma longa espera que "hoje não tem visita, estamos dando um banho". Porta fechada, cada pessoa que se encontrava naquele corredor também se fechava em sua dor e pegava o caminho de volta. Não nos era dado nem sequer uma informação. Tínhamos que esperar mais um dia para sabermos alguma coisa.
Então, minha mãe e eu nos dávamos os braços, engolíamos o choro e retornávamos ao flat. Passávamos sempre numa padaria, maravilhosa por sinal e ali procurávamos por comidas que de certa forma nos compensassem com seus sabores, preenchessem o vazio. Era só um disfarce, era uma maneira de acreditarmos que tínhamos saído de um pesadelo e voltado para a dita vida "normal".
Não, não se iludam. A vida nunca mais volta à normalidade.
Eu ficava olhando pela janela do flat imaginando qual seria a janela do hospital onde meu pai lutava por sobreviver. Ali eu rezava, eu me revoltava, e ora eu acreditava numa possível melhora, ora minha esperança  me abandonava por completo.
Só conseguíamos dormir à custa de remédios. Nós estávamos tão doentes quanto meu pai, com a diferença que tínhamos consciência de tudo e para a dor que sentíamos, não havia analgésico que a diminuísse.

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