sábado, 13 de dezembro de 2014

RELATOS PARKINSONIANOS - 5 -- A VIDA VAI SE DESPEDINDO

Já era 1995. A doença seguia seu curso implacavelmente, porém meu pai continuava lutando. Ia ao trabalho todos os dias, dirigindo, obviamente. Naquele ano realizou o maior de seus sonhos: conhecer Israel. Quando soube da notícia ficou absolutamente incrédulo, excitado como uma criança.
Só acreditou mesmo quando suas mãos trêmulas seguraram pela primeira vez as passagens.
Ai daquele que não sonha! E ele desejava ardentemente fazer aquela viagem, conhecer a terra onde Jesus viveu. De início ele iria sozinho, mas depois concluímos que o melhor era minha mãe ir junto Fazer as mínimas atividades já lhe era profundamente difícil. Imaginem num país estranho, sem conhecer ninguém.
Extremamente comunicativo, já nos primeiros dias em Tel Aviv resolveu se aventurar sozinho pela cidade. Demorou horas para voltar para o hotel, minha mãe já estava entrando em desespero, quando ele chega tranquilo e faceiro quarto adentro. Havia conhecido um judeu, alemão, travaram uma amizade instantânea e ele acabou sendo convidado para tomar um chá na casa do novo amigo.
Voltou parecendo um judeu, com kipá na cabeça, parecia ter saído de uma sinagoga.
Certo dia resolveu tomar um banho de banheira. Não conheço as banheiras israelenses, mas pela descrição, não são como as nossas, que ficam no nível do piso. Aquela era encravada no chão, como uma piscina, com bordas e fundos arredondados. Para entrar não houve problema, mas e para sair? Com as articulações totalmente comprometidas, ficou entalado, não conseguia se levantar, pois não havia uma barra de apoio e o mármore ficara ainda mais escorregadio pela espuma do sabonete.
Minha mãe tentava de todas as formas ajudá-lo e já estava prestes a solicitar ajuda de algum funcionário do hotel, contra sua vontade, bem visto. Ele não admitia a dependência. Depois de mais de uma hora conseguiu enfim se colocar de joelhos, se agarrar na borda e minha mãe pode içá-lo, tarefa não muito fácil, pois era homem grande e pesado.
Ficaram muitos dias em Israel, onde ele se recusou terminantemente a visitar o Museu do Holo causto. Depois seguiram para o Egito. Lá ele aprontou outra. Como era um dia livre, sem nenhum compromisso com a excursão, resolveram sair meio que sem rumo. Não sabiam  falar inglês, muito menos egípcio. Como fazer para comer? Avistaram um Mac Donalds, era a salvação, mas também não sabiam como pedir. Meu pai, que não era muito adepto a fastfoods não sabia que ali não se servia cerveja. Depois de muito olhar o cardápio, escolheram um sanduíche que parecia ser bom. Quando pegaram a bandeja ficaram encantados. Veio tudo numa caixinha que parecia um carrinho de brinquedo e junto, num potinho com uma massa meio avermelhada.
Olharam-se sem saber o que era aquilo, Passaram o dedo, cheiraram, provaram. Não tinha gosto de nada, mas provavelmente deveria ser algum acompanhamento  típico do Egito e meu pai não contou tempo, pegou um pedaço e meteu dentro do sanduíche. Não gostou muito, achou o sabor estranho e aquilo parecia não se desmanchar na boca. Minha mãe, mais cautelosa deixou o dela de lado.
Depois de já ter comido todo aquele "tempero", um garçom, que acredito, deveria estar às gargalhadas, com muita dificuldade conseguiu lhes  explicar que eles haviam pedido um lanche de criança e aquilo que meu pai comera era um brinde, uma massinha de modelar.
Até hoje, quando penso na situação, que aliás é uma coisa muito comum entre turistas, principalmente os que estão em terras muito distantes e diferentes da sua, sempre cometem gafes hilárias. Mas ao mesmo tempo em que acho graça, me dá uma tristeza só de imaginar meu pai, com as mão tremendo, arrancando nacos de massa de modelar e comendo-a.
De Israel, depois de ter visto tudo quanto sonhara conhecer, de ter caminhado pela "Via Crucis", levando nos ombros não uma cruz de madeira, mas  outra cruz, a da impotência que a doença inexoravelmente trazia, eles foram para o Egito. Lá, meu pai passeou de camelo, viu as pirâmides e também o paradoxo de um Cairo dourado e a pobreza dos arredores da cidade. Foram ainda para a Itália, e lá, lógico, não deixou de ir ao Vaticano, enquanto minha mãe, não tão afeita à religião, ficou fazendo compras.
Sonho realizado, um sonho de uma vida toda, tenho certeza que ele já estava pronto, pois nunca o vi reclamar, questionar  (pelo menos em voz alta) sobre o motivo de ter Parkinson, nunca deixou de fazer suas atividades.
Continuou indo a São Paulo, fazendo o tratamento e por fim decidiu, iria submeter-se à cirurgia.
Estava feliz e calmo com a decisão, nós também.
Os médicos lhe garantiram que o caso dele permitia o procedimento e ele entrou o ano de 1996 cheio de esperanças. Em ninguém passou sequer um pensamento de que poderia não dar certo. Quer dizer, até considerávamos que ele não parasse de  tremer, mas ele tinha tanta convicção, tanta certeza do sucesso, que não cabia a nós tentar contrariá-lo.
Passou a ir com mais frequência a São Paulo, mas não quis operar antes dos Jogos Abertos, realizados em outubro. Seria a última vez que ele participaria de um.
Não lembro em qual cidade aconteceram os Jogos, mas sei que ele chegou num sábado e na segunda feira, nos primeiros dias de novembro eu levei os dois, meu pai e minha mãe ao aeroporto.
Foi a última vez que o vi caminhando, foi a última vez em que ele acenou para mim, a caminho do avião. Vestia uma camisa nova, verde água e suas queridas calças jeans  que ele costumava chamar de "Pedro Cardim".
Dia quente, ensolarado, próprio para voar em céu de brigadeiro. Ele estava tranquilo e eu também.
Nunca fui uma mulher com veia otimista. Pelo contrário, costumava ver obstáculos em tudo, criava problemas inexistentes, mas no caso de meu pai, me culpo por não ter sido pelo menos um pouquinho cautelosa, não ter me preparado ou a ele, para uma possível tempestade. O máximo que conseguia ponderar é que talvez a cirurgia não surtisse o efeito desejado, que era o de fazer cessar os tremores
Nunca cogitei que nossas vidas seriam atingidas por um tsunami, jamais pensei no imponderável.
Hospedaram-se em um hotel próximo ao hospital e no dia seguinte ele foi internado para os exames pré-operatórios. Levou consigo alguns poucos pertences e um livro sobre Platão, onde fazia anotações, já com sua letra cambaleante e miúda, devido à micrografia, também um dos sintomas da  doença.
De cabeça raspada, ficou aguardando o dia, porém a cirurgia teve que ser adiada, pois foi só na véspera que ele contou ao médico que tomava todos os dias um comprimido de ácido acetilsalicílico, um anti coagulante para prevenir problemas cardíacos.
Imediatamente o cirurgião mudou a data, preferiu esperar uns dias para não correr o risco de uma hemorragia durante o procedimento.
Assim, a operação ficou marcada para o dia dezoito de novembro, uma segunda-feira. Ele permaneceu no hospital, mas com liberdade para sair e no sábado, claro foi com minha mãe até o Mercado Público.O natal já não estava longe e ele precisava comprar bacalhau para as festas.
Dizia minha mãe que ele parecia um menino, feliz, cheio de expectativas, com um boné cobrindo a cabeça raspada. Almoçaram no Almanara, um típico e famoso restaurante árabe, onde ele se deliciou com as comidas do Oriente, que ele tanto gostava.  Neste dia ele se despediu da vida, fez tudo o quanto apreciava. Foi o dia das últimas coisas.
Eu estava de férias e em Blumenau (nessa época já havia deixado de morar em Curitiba). Falei, como de costume com minha mãe, no domingo. Soube que ele estava muito calmo, ansioso, claro, pela expectativa da segunda-feira, mas penso quem em sua cabeça só passava o pensamento de que dentro em pouco ele não tremeria mais, que dali para diante ele não precisaria esconder as mãos nas costas, gesto que ele fazia sempre que estava em público. Realmente, ele nunca mais esconderia suas mãos, pois elas nunca mais se mexeriam.

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