Foi difícil voltar. Havia decidido que minha "carreira" de escritora tinha morrido. Levei um bom tempo para aceitar que nem todo mundo pode gostar do que escrevo, assim como eu não gosto de alguns autores. Enfim, após receber vários e-mail pedindo que eu voltasse à minha história, achei que era uma bobagem parar. E não vou nem comentar mais sobre o ocorrido, mas sim sobre o que é uma pessoa sofrer de Parkinson.
Durante muitos anos, eu, como enfermeira, estive do outro lado, ou seja, nem eu era doente e tão pouco tinha alguém da família com um caso tão grave, portanto, minhas análises eram apenas destinadas sobre pessoas estranhas, com as quais eu não tinha convivência, não tinha laços afetivos. Hoje, estou dos dois lados da vida. Já fui "família" e agora sou "paciente". Realmente PACIENTE, porque haja paciência!
Enquanto meu pai estava vivo e eu era parte da "famìlia", descobri que a enfermagem e os médicos dão muito valor ao doente, mas se esquecem que de alguma forma, a família também adoece, também sofre e precisa de apoio. Talvez não precise de medicamentos, mas de ombros e mãos amigas, de palavras de conforto e sobretudo, precisa aprender a buscar forças que muitas vezes ela nem sabe que tem. A vivência com um parente próximo se torna mais fácil quando os familiares são unidos por laços afetuosos, quando todos estão, de alguma maneira dispostos a ajudar, a compartilhar, o que não era meu caso. Todos, sem exceção, tinham suas vidas, seus afazeres dos quais não podiam abrir mão.
Mas eu existia, era enfermeira, morava perto e o melhor de tudo, era "encalhada", ou seja, não tinha marido ou namorado. Então Ana, assuma o leme, toque o barco sozinha. Se por acaso o mar ficar muito agitado nos chame, se der vamos até aí ajudar.
Hoje, não contabilizo isso como falta de amor,era apenas uma forma de se eximir do sofrimento alheio, ainda que o alheio fosse nosso pai.
Com minha prima, também foi igual. Primeiro minha tia, ficou cega, devido a um glaucoma não tratado corretamente, Em seguida, entrou em coma, que durou anos, sem que até hoje não se tenha sabido as causas que a levaram a àquele estado. Minha prima também tinha mais três irmãos, mas foi ela o comandante daquela nau que se sabia, iria afundar.
Quis o destino (será mesmo o destino?) que ela também recebesse o glaucoma como herança. Fazia muito tempo que não nos víamos e quando a reencontrei, de bengala, achei que ela havia caído, estivesse com um pé quebrado, qualquer coisa do gênero. Mas não, ela estava praticamente cega e mesmo com todos os recursos da medicina, seu caso era irreversível.
Levei um choque imenso, mas por incrível que possa parecer, ela não tinha revolta ou amargura, ela aceitava como um fato da vida, um fato que pode atingir qualquer um de nós.
Fazia tudo o que conseguia, até casou-se novamente e não se entregou. Anda bonita, bem arrumada, agora mesmo acabou de chegar de uma temporada na Europa, com direito até a um cruzeiro pelo mediterrâneo. Conseguiu enxergar tudo? Certamente não, mas o que viu já foi o suficiente para lhe alegrar a vida.
Óbvio que, ao saber da sua condição houve o momento da revolta, da dor e às vezes ainda deixa a tristeza fluir, a incompreensão se aflorar. É mais do que normal, afinal ela é humana, não santa destinada a um martírio sem chorar. Mas procura de todas as formas aproveitar o que a vida lhe oferece. Agarra-se com gosto a tudo que lhe é dado. Não se deixa derrubar.
E foi nela, mais do que qualquer outro exemplo que tenha conhecido, que me espelhei quando me descobri parkinsoniana. É nela que penso quando a amargura quer me abater, quando deixo cair as coisas que tento segurar em minhas mãos tolas ou quando tropeço na rua e as pessoas pensam que estou caindo de bêbada.
Também temos em comum, não só uma doença irreversível e invalidante. Temos maridos maravilhosos, que estão sempre a nos segurar, nos guiar. Não estamos sozinhas, acho até que somos privilegiadas, até porque eles estão conosco não por pena, mas por amor.
Quantas mulheres podem dizer isso de seus companheiros? Nós podemos e isso faz a vida valer a pena.
sábado, 31 de janeiro de 2015
sábado, 17 de janeiro de 2015
HISTORINHA TIPO WHATSAPP
Minha tia teve glaucoma. Morreu cega. Minha prima também tem glaucoma, também está ficando cega. Não se revolta. Segui se exemplo, não me entrego ao Parkinson, ando até de salto alto, assim vou levando a vida. FIM.
AGORA ESTÁ DO TAMANHO CERTO PARA UMA HISTÓRIA? AGORA ESTÁ MENOS CANSATIVO?
AGORA ESTÁ DO TAMANHO CERTO PARA UMA HISTÓRIA? AGORA ESTÁ MENOS CANSATIVO?
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
EXPLICAÇÕES
Antes de continuar meus relatos é preciso que eu desfaça algumas possíveis confusões.
Quem me acessa , muito provavelmente o faz pensando em se tratar de um BLOG, um "blog comme il faut", com diagramação, imagens, textos curtos, alguns sérios, outros dotados de humor, outros ainda cheios de dicas de moda e beleza. É bem possível que, pelo menos nesses últimos tempos, alguns leitores tenham se decepcionado. Na verdade, o que eu denomino como blog não é de fato um blog. Acho que poderia ser chamado de e-book, porque é isso o que estou tentando fazer, contar uma história real e muito dolorosa, usando essa ferramenta virtual, já que não sei como imprimir um livro.
E uma história, tem nuances, tem seu ritmo próprio, segue uma cronologia, expõe fatos e sentimentos. Não posso descrever a doença de meu pai como se descreve como pintar as unhas. Há todo um processo construtivo, uma linha de raciocínio que precisa ser seguida e respeitada. Se o faço bem, não sei, embora venha recebendo críticas muito positivas, porém as pessoas têm que ter a compreensão de que aqui há uma história de vida e morte e muito embora eu, por vezes infunda um pouco de humor, não posso tratar do tema de forma superficial.
É uma leitura cansativa? Então jamais se arrisque a encarar "Guerra e Paz" ou outro grande ícone da literatura mundial, onde existem páginas e páginas dedicadas a descrever, por exemplo, um jardim.
Sei bem, vivemos no mundo do ontem, tudo tem que ser para já, para o agora. A pressa nos domina, a paciência se esgota em poucos segundos, mas não há como contar a história de uma vida em três ou quatro páginas.
Aceito algumas críticas, acho-as até pertinentes. Talvez mesmo eu seja prolixa em demasia. Vou tentar ser mais sintética, mas sinceramente, como vou explicar como conviver com Parkinson? Através de uma bula, de um manual de instruções?
Como vou fazer uma omelete sem quebrar os ovos?
Tento fazer o melhor que posso, da forma que sei. Não posso copiar o estilo de ninguém. De toda forma, fiquei feliz com a correspondência que recebi hoje, com as palavras carinhosas, com a delicadeza de ter me respondido. Só queria que ficasse bem claro: o meu blog, apesar do nome, não é um blog, é a tentativa de ser um livro, tem o formato de um livro.
Diagramação é importante? Sim, é, mas eu não sei fazer, não sou designer gráfica. Conto, quando posso e consigo com algumas ilustrações, mas infelizmente não domino muito essa ferramenta e sinceramente, mesmo achando que às vezes uma imagem vale mais que mil palavras, o que realmente importa é a essência.
Já tive outros blogs, que desativei, com mais de 30.000 acessos, o que não é pouco para alguém completamente desconhecido. E quando passo tempo sem postar nada sempre recebo reclamações.
Então, me desculpe e com todo o respeito e carinho, não posso acreditar que o que eu escreva seja cansativo. Meus escritos não são descartáveis, não são palavras para serem soltas ao vento. São depoimentos, desabafos.
Tente entender, sei que você consegue.
Quem me acessa , muito provavelmente o faz pensando em se tratar de um BLOG, um "blog comme il faut", com diagramação, imagens, textos curtos, alguns sérios, outros dotados de humor, outros ainda cheios de dicas de moda e beleza. É bem possível que, pelo menos nesses últimos tempos, alguns leitores tenham se decepcionado. Na verdade, o que eu denomino como blog não é de fato um blog. Acho que poderia ser chamado de e-book, porque é isso o que estou tentando fazer, contar uma história real e muito dolorosa, usando essa ferramenta virtual, já que não sei como imprimir um livro.
E uma história, tem nuances, tem seu ritmo próprio, segue uma cronologia, expõe fatos e sentimentos. Não posso descrever a doença de meu pai como se descreve como pintar as unhas. Há todo um processo construtivo, uma linha de raciocínio que precisa ser seguida e respeitada. Se o faço bem, não sei, embora venha recebendo críticas muito positivas, porém as pessoas têm que ter a compreensão de que aqui há uma história de vida e morte e muito embora eu, por vezes infunda um pouco de humor, não posso tratar do tema de forma superficial.
É uma leitura cansativa? Então jamais se arrisque a encarar "Guerra e Paz" ou outro grande ícone da literatura mundial, onde existem páginas e páginas dedicadas a descrever, por exemplo, um jardim.
Sei bem, vivemos no mundo do ontem, tudo tem que ser para já, para o agora. A pressa nos domina, a paciência se esgota em poucos segundos, mas não há como contar a história de uma vida em três ou quatro páginas.
Aceito algumas críticas, acho-as até pertinentes. Talvez mesmo eu seja prolixa em demasia. Vou tentar ser mais sintética, mas sinceramente, como vou explicar como conviver com Parkinson? Através de uma bula, de um manual de instruções?
Como vou fazer uma omelete sem quebrar os ovos?
Tento fazer o melhor que posso, da forma que sei. Não posso copiar o estilo de ninguém. De toda forma, fiquei feliz com a correspondência que recebi hoje, com as palavras carinhosas, com a delicadeza de ter me respondido. Só queria que ficasse bem claro: o meu blog, apesar do nome, não é um blog, é a tentativa de ser um livro, tem o formato de um livro.
Diagramação é importante? Sim, é, mas eu não sei fazer, não sou designer gráfica. Conto, quando posso e consigo com algumas ilustrações, mas infelizmente não domino muito essa ferramenta e sinceramente, mesmo achando que às vezes uma imagem vale mais que mil palavras, o que realmente importa é a essência.
Já tive outros blogs, que desativei, com mais de 30.000 acessos, o que não é pouco para alguém completamente desconhecido. E quando passo tempo sem postar nada sempre recebo reclamações.
Então, me desculpe e com todo o respeito e carinho, não posso acreditar que o que eu escreva seja cansativo. Meus escritos não são descartáveis, não são palavras para serem soltas ao vento. São depoimentos, desabafos.
Tente entender, sei que você consegue.
AFASTAMENTO COMPULSÓRIO
Dois dias longe dos meus escritos, entro em crise de abstinência, pois escrever se torna um vício.
É verdade que não me afastei do computador, nem das palavras, mas agora elas eram acadêmicas. Precisei dar uma ajuda em uns artigos que meu marido está fazendo para o Mestrado e absolutamente não posso me negar, não para uma pessoa que faz absolutamente tudo para mim. Não, eu não escrevi os textos, apenas reescrevi, coloquei em ordem. Foi bom, fiquei mais letrada, passei a entender mais de turismo, de patrimônio histórico. Também valeu porque essas parcerias consolidam nossa relação, é sempre um ajudando ao outro. Achamos que assim deve ser um casamento: um compartilhamento onde os dois crescem juntos.
Gosto de escrever nas primeiras horas da manhã, quando está amanhecendo, quando ainda há silêncio, quando ainda o cantar dos passarinhos lá fora não é abafado pelo som dos motores ou dos muitos carros que têm uma casa noturna dentro deles e colocam música sertaneja a um volume insuportável.
Já criei uma certa rotina: à noite, quando vou para a cama já tenho um assunto na cabeça, geralmente ele tem relação com algo que me aconteceu durante o dia. Pode ser uma coisa boba, como um tropeção no tapete, uma topada no canto da mesa porque me desequilibrei, mas qualquer desses percalcinhos (nem tão percalcinhos assim, minhas pernas vivem pintadas de roxo), não me permitem esquecer que tenho Parkinson. Muitas vezes isso passa batido, nem ligo, porém em outros momentos minha energia baixa, minha força se vai e não é raro uma revolta nascer.
Tenho suportado tudo de uma forma muito firme, pelo menos, quase sempre. Lógico, ninguém em sã consciência vai querer aos cinquenta e sete anos saber que está com uma doença que não tem cura e que vai aos poucos me tornando inválida. Pode acreditar, não é uma sensação boa. Mas nada posso contra isso e como sou partidária da máxima que diz que "quando você não pode contra um inimigo, una-se a ele", foi o que fiz, desde que passou o choque inicial e a razão se impôs.
Adianta alguma coisa eu entrar em desespero, me revoltar, me recolher num casulo?
Peguei o Parkinson pelo colarinho, coloquei-o cara a cara comigo e lhe dei um recado: " meu amigo, não adianta, você não vai me dominar, muito menos me derrotar, pode até me abater, mas eu vou resistir".
Não sou melhor que ninguém não, e muito menos estou aqui posando de heroína. Nada disso. Têm dias em que a tristeza chega, o desespero pelas dificuldades para executar coisas mínimas me prostra e então, já aprendi, tomo um calmante, deito e durmo. Se ficar lutando contra, sei que vou perder a batalha, então o melhor é relaxar. Não foi um processo fácil chegar a este ponto. Foi preciso muita terapia, mas entendi que, se minha vida já é complicada pela doença, por que vou torná-la pior?
Como toda pessoa portadora de uma patologia grave e incurável passei pelos cinco estágios já amplamente descritos pela médica psiquiátrica americana Elisabeth Kubler Ross.
Ela coloca que diante de um fato, ou de uma perda muito significativa, vivemos um período que ela chama de "luto". Não necessariamente esse luto tem que ser relativo à morte de um ente querido, ou mesmo a nossa. Podem ser acontecimentos vários, e claro, ele se manifesta com mais intensidade quanto mais grave for o fato.
É óbvio que não fiquei feliz ao me descobrir doente. Quem ficaria? Acredito que todo ser humano busca o bem estar, o ser saudável, o estar bem. Relembrando um pouco da minha vida de enfermagem, cito o conceito de saúde preconizado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), que diz: " saúde é o bem estar completo físico, mental e social e não apenas a ausência da doença".
Assim, estar ou ser doente não significa apenas ter dor física, ela é apenas um dos agentes e vamos combinar, não é nada fácil, você perante os outros derramar vinho em seu lindo vestido porque suas mão são incapazes de ficarem quietas, ou andar trançando as pernas, tal qual um bêbado equilibrista ( me perdoe João Bosco). Ninguém gosta de ser observado de maneira piedosa, com olhares de soslaio, com comentários a meia voz. Eu, como todos, quero estar PERFEITA.
No começo me sentia muito desconfortável com essas reações. Na verdade tinha vergonha. Ficava imaginando o que ou outros pensavam; " o quê esta mulher, bêbada como um peru em véspera de Natal, está fazendo aqui'? A primeira coisa que fazia era levar minhas mãos nas costas, escondê-las, para que ninguém percebesse os tremores.
Tolo engano. Em algum momento elas teriam que ser expostas. Vou comer como? Enfiando a cara no prato e abocanhando um pedaço de carne tal qual um cachorro?
Mas voltando à doutora Elisabeth, cujo trabalho eu já conhecia, comecei a vivenciar, mesmo sem ter a devida consciência o que ela preconizava.
Ela afirma que passamos por cinco fases (às vezes nem todas e não na mesma ordem): negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. E vivenciei e ainda de certa forma vivencio, pois não se trata de um processo estanque, quatro delas, com mais ou menos intensidade. A única pela qual eu não passei foi a fase da barganha, aquela em que fica-se propondo a Deus levar um maço de velas, ou fazer uma novena, ou qualquer ato de bondade para o próximo, caso ele nos cure.
Nem que eu me propusesse ir de joelhos até a cidade de Aparecida do Norte, eu me livraria do Parkinson. Decididamente, sou uma mulher sem fé ou pelo menos, de pouca fé.
Não existe um limite para cada uma das fases, muitas vezes elas se entrelaçam, mas o que melhor pode acontecer é quando chega, enfim, a aceitação.
Pronto. Você tem Parkinson, não tem cura, mas existem tratamentos paliativos e tudo o que você não pode fazer é sentir pena de você mesma. Trate de aprender a conviver com suas limitações e se possível, ria de suas trapalhadas.
O pior é quando caio. Sempre que vejo eu mesma ou outra pessoa ir ao chão, me dá uma reação nervosa que mistura um riso completamente incontido e um choro idem (se o tombo for meu). Mas o pior não é chorar nem rir, o pior é fazer xixi nas calças, algo muito comum quando me vejo numa situação dessa. Se do meu pai herdei o Parkinson, da minha mãe herdei a incontinência urinária.
Será que os dois não poderiam ter me deixado, sei lá, umas jóias, um dinheiro, umas glebas de terras, uns imóveis?
Não, me deixaram de presente, além da doença, o vexame de não poder rir sem que a bexiga exploda.
Mas a aceitação é apenas uma das partes de jogo infernal.Há muitas outras peças, mas a gente vai aprendendo a jogar.
É verdade que não me afastei do computador, nem das palavras, mas agora elas eram acadêmicas. Precisei dar uma ajuda em uns artigos que meu marido está fazendo para o Mestrado e absolutamente não posso me negar, não para uma pessoa que faz absolutamente tudo para mim. Não, eu não escrevi os textos, apenas reescrevi, coloquei em ordem. Foi bom, fiquei mais letrada, passei a entender mais de turismo, de patrimônio histórico. Também valeu porque essas parcerias consolidam nossa relação, é sempre um ajudando ao outro. Achamos que assim deve ser um casamento: um compartilhamento onde os dois crescem juntos.
Gosto de escrever nas primeiras horas da manhã, quando está amanhecendo, quando ainda há silêncio, quando ainda o cantar dos passarinhos lá fora não é abafado pelo som dos motores ou dos muitos carros que têm uma casa noturna dentro deles e colocam música sertaneja a um volume insuportável.
Já criei uma certa rotina: à noite, quando vou para a cama já tenho um assunto na cabeça, geralmente ele tem relação com algo que me aconteceu durante o dia. Pode ser uma coisa boba, como um tropeção no tapete, uma topada no canto da mesa porque me desequilibrei, mas qualquer desses percalcinhos (nem tão percalcinhos assim, minhas pernas vivem pintadas de roxo), não me permitem esquecer que tenho Parkinson. Muitas vezes isso passa batido, nem ligo, porém em outros momentos minha energia baixa, minha força se vai e não é raro uma revolta nascer.
Tenho suportado tudo de uma forma muito firme, pelo menos, quase sempre. Lógico, ninguém em sã consciência vai querer aos cinquenta e sete anos saber que está com uma doença que não tem cura e que vai aos poucos me tornando inválida. Pode acreditar, não é uma sensação boa. Mas nada posso contra isso e como sou partidária da máxima que diz que "quando você não pode contra um inimigo, una-se a ele", foi o que fiz, desde que passou o choque inicial e a razão se impôs.
Adianta alguma coisa eu entrar em desespero, me revoltar, me recolher num casulo?
Peguei o Parkinson pelo colarinho, coloquei-o cara a cara comigo e lhe dei um recado: " meu amigo, não adianta, você não vai me dominar, muito menos me derrotar, pode até me abater, mas eu vou resistir".
Não sou melhor que ninguém não, e muito menos estou aqui posando de heroína. Nada disso. Têm dias em que a tristeza chega, o desespero pelas dificuldades para executar coisas mínimas me prostra e então, já aprendi, tomo um calmante, deito e durmo. Se ficar lutando contra, sei que vou perder a batalha, então o melhor é relaxar. Não foi um processo fácil chegar a este ponto. Foi preciso muita terapia, mas entendi que, se minha vida já é complicada pela doença, por que vou torná-la pior?
Como toda pessoa portadora de uma patologia grave e incurável passei pelos cinco estágios já amplamente descritos pela médica psiquiátrica americana Elisabeth Kubler Ross.
Ela coloca que diante de um fato, ou de uma perda muito significativa, vivemos um período que ela chama de "luto". Não necessariamente esse luto tem que ser relativo à morte de um ente querido, ou mesmo a nossa. Podem ser acontecimentos vários, e claro, ele se manifesta com mais intensidade quanto mais grave for o fato.
É óbvio que não fiquei feliz ao me descobrir doente. Quem ficaria? Acredito que todo ser humano busca o bem estar, o ser saudável, o estar bem. Relembrando um pouco da minha vida de enfermagem, cito o conceito de saúde preconizado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), que diz: " saúde é o bem estar completo físico, mental e social e não apenas a ausência da doença".
Assim, estar ou ser doente não significa apenas ter dor física, ela é apenas um dos agentes e vamos combinar, não é nada fácil, você perante os outros derramar vinho em seu lindo vestido porque suas mão são incapazes de ficarem quietas, ou andar trançando as pernas, tal qual um bêbado equilibrista ( me perdoe João Bosco). Ninguém gosta de ser observado de maneira piedosa, com olhares de soslaio, com comentários a meia voz. Eu, como todos, quero estar PERFEITA.
No começo me sentia muito desconfortável com essas reações. Na verdade tinha vergonha. Ficava imaginando o que ou outros pensavam; " o quê esta mulher, bêbada como um peru em véspera de Natal, está fazendo aqui'? A primeira coisa que fazia era levar minhas mãos nas costas, escondê-las, para que ninguém percebesse os tremores.
Tolo engano. Em algum momento elas teriam que ser expostas. Vou comer como? Enfiando a cara no prato e abocanhando um pedaço de carne tal qual um cachorro?
Mas voltando à doutora Elisabeth, cujo trabalho eu já conhecia, comecei a vivenciar, mesmo sem ter a devida consciência o que ela preconizava.
Ela afirma que passamos por cinco fases (às vezes nem todas e não na mesma ordem): negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. E vivenciei e ainda de certa forma vivencio, pois não se trata de um processo estanque, quatro delas, com mais ou menos intensidade. A única pela qual eu não passei foi a fase da barganha, aquela em que fica-se propondo a Deus levar um maço de velas, ou fazer uma novena, ou qualquer ato de bondade para o próximo, caso ele nos cure.
Nem que eu me propusesse ir de joelhos até a cidade de Aparecida do Norte, eu me livraria do Parkinson. Decididamente, sou uma mulher sem fé ou pelo menos, de pouca fé.
Não existe um limite para cada uma das fases, muitas vezes elas se entrelaçam, mas o que melhor pode acontecer é quando chega, enfim, a aceitação.
Pronto. Você tem Parkinson, não tem cura, mas existem tratamentos paliativos e tudo o que você não pode fazer é sentir pena de você mesma. Trate de aprender a conviver com suas limitações e se possível, ria de suas trapalhadas.
O pior é quando caio. Sempre que vejo eu mesma ou outra pessoa ir ao chão, me dá uma reação nervosa que mistura um riso completamente incontido e um choro idem (se o tombo for meu). Mas o pior não é chorar nem rir, o pior é fazer xixi nas calças, algo muito comum quando me vejo numa situação dessa. Se do meu pai herdei o Parkinson, da minha mãe herdei a incontinência urinária.
Será que os dois não poderiam ter me deixado, sei lá, umas jóias, um dinheiro, umas glebas de terras, uns imóveis?
Não, me deixaram de presente, além da doença, o vexame de não poder rir sem que a bexiga exploda.
Mas a aceitação é apenas uma das partes de jogo infernal.Há muitas outras peças, mas a gente vai aprendendo a jogar.
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
NÃO EXISTE MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA
Diagnóstico comprovadíssimo, sintomatologia cada vez mais aparente, tratamento iniciado, baseado principalmente no uso de dopamina, a tal substância que o meu querido cérebro não produz mais e que é a chefona que determina o controle do meus movimentos.
Mais três comprimidos ao dia e os tremores das mãos, principalmente da direita, diminuíram sensivelmente, mas ainda assim, meu marido abortou minhas pretensões de ser uma "chef de cuisine". Picar uma cebola podia significar uma tentativa de suicídio. Lavar a louça também passou a ser tarefa dele, afinal quebrar louças virou meu esporte favorito.
Hoje faço as tarefas caseiras menos minuciosas, as que não exigem tanta delicadeza, mas para isso tenho que me abster de tomar o Prolopa pela manhã. Não sei avaliar se porque já tomo uma série de outros remédiospsiquiátricos nesse horário, o caso é que me bate um sono absolutamente fora de hora e minha única solução é voltar para cama. Então passei a me medicar ao meio dia, pois então posso almoçar e finalmente tirar uma soneca da beleza.
Aos poucos fui percebendo outroscomprometimentos. Sempre tive uma letra bonita e escrevo muito, mas agora minha letra começou a se tornar anã. É o que se chama de micrografia. Começo a escrever que é uma maravilha, mas então as letras vão diminuindo, ficando nanicas e quase ilegíveis. Abandonei a caneta e agora só uso o computador. Aqui elassó ficam pequeninas se mudar a fonte.
Ano passado resolvi que tinha que sair em busca de outras alternativas,além dos medicamentos. Resolvi fazer academia, junto com meu marido. Comprei umasroupas supimpas e assim, toda paramentada comecei a frequentar umas das melhores academias da cidade. Lá, além da malhação, teria também um atendimento fisioterápico. No começo foi tudo muito bem. Tudo era direcionado aos meus problemas, que infelizmente não se resumem só ao Parkinson. Além do "alemão" tenho três hérnias de discos cervicais (pense se sequer cogito a possibilidade de operá-las?) e também duas sacro-lombares. Porém quando saí do sistema "for you", onde praticamente tinha uma "personal trainner" , a tragédia se deu. Todos os dias tinha professores diferentes, que embora sempre fossem muito atenciosos e comumente se inteirassem dos meus casos, parecia-me que eles estavam mais interessados na parte estética do que nos meus problemas físicos. Lógico que eu desejava ardentemente perder aquela barriguinha indesejada e arrumar minha postura, que aos poucos vai me levando para a frente.
Então tá, vamos fortalecer a musculatura lombar, estufar o peito (que também já sofre a ação degradante da gravidade), encolher a pança e elevar o bumbum para bem longe das minhas costas.
Bastou uma aula e uma caminhada para ficar quase paralítica. As dores eram imensas, quase não podia mais andar. Eu estava bem arranjada, só me faltava uma cadeira de rodas.
Mais sessões de fisioterapia, massoterapia e mais remédios, analgésicos que geralmente me são proibidos, pois também tive um tumor no estômago e não é qualquer coisa que posso tomar.
Desisti da academia, aposentei meus lindo trajes, pelo menos por enquanto, pois ainda não estou completamente livre das dores.
A medicação para diminuir os tremores surte um efeito razoável, em compensação, a falta de equilíbrio e o trançado bêbado das pernas se acentuaram. Precisava de outra medicação que desse conta desses agravos. Também percebi que minha fala começou a se modificar e lá vou eu para a fonoaudióloga. Mas descobri com o tempo que essa dificuldade se acentuava mais quando por alguma razão ficava nervosa. Se estava em calmaria avoz também ficava normal. Decidi parar com a fono, minha vida estava se resumindo a um ir e vir constante a consultórios e como não dirijo e moro longe, fico sempre a depender da disponibilidade de horários do meu marido. E vamos combinar, para ele se tornar um escravo de verdade, só falta eu montar um pelourinho na varanda. Carta de alforria? Só se nós nos separamos.
Até agora tenho me detido à parte física, à dependência e inutilidade que ela me causa. Mas e a parte emocional? Ela conta, e muito, talvez até mais do que a falta da capacidade motora.
No início, sentia muita vergonha de me expor, de sair, o que aliás raramente faço sozinha. Uma simples ida ao shopping ou descer uma escada é um ato de coragem. Calçadas então, são verdadeiras armadilhas, estou sempre correndo o risco de ser caçada por uma buraco ou um desnível que me leve a me estabacar no chão feito uma fruta podre.
Incompreensivelmente, sinto-me mais segura andando de bicicleta, porém só uso deste recurso por aqui, pelo meu bairro, onde o trânsito ainda é um pouco mais tranquilo que a região central. Meu maior problema é subir e descer da "bike", que já é de um tamanho menor do que a recomendada para um adulto. É comum ficar entalada. As pernas se recusam a me ajudar e geralmente preciso de auxílio.
Semana passada vivi uma situação bem desagradável, que no primeiro momento me fez ir àslágrimas, mas que depois me fez rir, o que aliás é um bom remédio. Auto-piedade em nada resolve.
Precisei sair a pé. Me marido estava no hospital acompanhando meu sogro que havia sofrido um infarto. Por aqui não passa um miserável de um ônibus (quem diz que Balneário Camboriú é um paraíso?) que me levasse pelo menos até próximo do destino. Fui corajosamente e muito lentamente caminhando, tentando controlar os meus pés. Táxi? Nem pensar, simplesmente eles são poucos por aqui. Na volta, a mesma situação, além da dificuldade de enfrentar sozinha as calçadas ainda tinha que ter a cabeça torrada por um sol inclemente. Em certo momento,não aguentando mais, optei por chamar um moto-táxi, desses que trazem consigo um capacete que pode lhe fazer nascer uma ninhada de piolhos. O motoboy já ficou meio apreensivo ao se deparar comigo, que ainda, desgraças das desgraças, estava de vestido. Subir numa moto é uma ato heroico. Primeiro tenho que tirar os óculos, pois óculos e capacete não se ajustam, então fico cega. Talvez isso seja bom, assim me impede de ver as manobras violentas que eles costumam fazer no trânsito. Para subir , sentar, achar o apoio para os pés é óbvio que necessito de ajuda e o rapaz foi bastante prestativo, inclusive ajeitando meu vestido para que meu bumbum não ficasse exposto.
Mas ao chegar em casa, como fazer para descer? Precisei da delicadeza da zeladora do prédio, que junto com o motorista me içou. Me pegaram literalmente pelas pernas e braços e me colocaram em segurança em terra firme. Sentei-me na calçada e deixei as lágrimas pularem para fora de meus olhos.
Depois de passado o vexame, ri a não mais poder, fiquei imaginando a cena ridícula, mas infelizmente necessária e se alguém me viu, dane-se, já há muito mandei a vergonha para aquele lugar que você sabe muito bem onde é.
PS: QUERIDOS LEITORES, DESCULPEM ALGUNS ERROS, QUE NÃO SÃO DE ORTOGRAFIA, MAS SIM DESTE COMPUTADOR. SE ERRO UMA PALAVRA OU ESQUEÇO DE DIGITAR UMA LETRA E APERTO A TECLA DELETE PARA CONSERTAR, VAI APAGANDO TUDO. ENTÃO SÓ ME RESTAM DUAS OPÇÕES: OU REESCREVO OU DEIXO AS PALAVRAS COLADINHAS. OPTEI, POR PURA PREGUIÇA, PELA SEGUNDA. VOU TENTAR RESOLVER O MAIS BREVE POSSÍVEL
Mais três comprimidos ao dia e os tremores das mãos, principalmente da direita, diminuíram sensivelmente, mas ainda assim, meu marido abortou minhas pretensões de ser uma "chef de cuisine". Picar uma cebola podia significar uma tentativa de suicídio. Lavar a louça também passou a ser tarefa dele, afinal quebrar louças virou meu esporte favorito.
Hoje faço as tarefas caseiras menos minuciosas, as que não exigem tanta delicadeza, mas para isso tenho que me abster de tomar o Prolopa pela manhã. Não sei avaliar se porque já tomo uma série de outros remédiospsiquiátricos nesse horário, o caso é que me bate um sono absolutamente fora de hora e minha única solução é voltar para cama. Então passei a me medicar ao meio dia, pois então posso almoçar e finalmente tirar uma soneca da beleza.
Aos poucos fui percebendo outroscomprometimentos. Sempre tive uma letra bonita e escrevo muito, mas agora minha letra começou a se tornar anã. É o que se chama de micrografia. Começo a escrever que é uma maravilha, mas então as letras vão diminuindo, ficando nanicas e quase ilegíveis. Abandonei a caneta e agora só uso o computador. Aqui elassó ficam pequeninas se mudar a fonte.
Ano passado resolvi que tinha que sair em busca de outras alternativas,além dos medicamentos. Resolvi fazer academia, junto com meu marido. Comprei umasroupas supimpas e assim, toda paramentada comecei a frequentar umas das melhores academias da cidade. Lá, além da malhação, teria também um atendimento fisioterápico. No começo foi tudo muito bem. Tudo era direcionado aos meus problemas, que infelizmente não se resumem só ao Parkinson. Além do "alemão" tenho três hérnias de discos cervicais (pense se sequer cogito a possibilidade de operá-las?) e também duas sacro-lombares. Porém quando saí do sistema "for you", onde praticamente tinha uma "personal trainner" , a tragédia se deu. Todos os dias tinha professores diferentes, que embora sempre fossem muito atenciosos e comumente se inteirassem dos meus casos, parecia-me que eles estavam mais interessados na parte estética do que nos meus problemas físicos. Lógico que eu desejava ardentemente perder aquela barriguinha indesejada e arrumar minha postura, que aos poucos vai me levando para a frente.
Então tá, vamos fortalecer a musculatura lombar, estufar o peito (que também já sofre a ação degradante da gravidade), encolher a pança e elevar o bumbum para bem longe das minhas costas.
Bastou uma aula e uma caminhada para ficar quase paralítica. As dores eram imensas, quase não podia mais andar. Eu estava bem arranjada, só me faltava uma cadeira de rodas.
Mais sessões de fisioterapia, massoterapia e mais remédios, analgésicos que geralmente me são proibidos, pois também tive um tumor no estômago e não é qualquer coisa que posso tomar.
Desisti da academia, aposentei meus lindo trajes, pelo menos por enquanto, pois ainda não estou completamente livre das dores.
A medicação para diminuir os tremores surte um efeito razoável, em compensação, a falta de equilíbrio e o trançado bêbado das pernas se acentuaram. Precisava de outra medicação que desse conta desses agravos. Também percebi que minha fala começou a se modificar e lá vou eu para a fonoaudióloga. Mas descobri com o tempo que essa dificuldade se acentuava mais quando por alguma razão ficava nervosa. Se estava em calmaria avoz também ficava normal. Decidi parar com a fono, minha vida estava se resumindo a um ir e vir constante a consultórios e como não dirijo e moro longe, fico sempre a depender da disponibilidade de horários do meu marido. E vamos combinar, para ele se tornar um escravo de verdade, só falta eu montar um pelourinho na varanda. Carta de alforria? Só se nós nos separamos.
Até agora tenho me detido à parte física, à dependência e inutilidade que ela me causa. Mas e a parte emocional? Ela conta, e muito, talvez até mais do que a falta da capacidade motora.
No início, sentia muita vergonha de me expor, de sair, o que aliás raramente faço sozinha. Uma simples ida ao shopping ou descer uma escada é um ato de coragem. Calçadas então, são verdadeiras armadilhas, estou sempre correndo o risco de ser caçada por uma buraco ou um desnível que me leve a me estabacar no chão feito uma fruta podre.
Incompreensivelmente, sinto-me mais segura andando de bicicleta, porém só uso deste recurso por aqui, pelo meu bairro, onde o trânsito ainda é um pouco mais tranquilo que a região central. Meu maior problema é subir e descer da "bike", que já é de um tamanho menor do que a recomendada para um adulto. É comum ficar entalada. As pernas se recusam a me ajudar e geralmente preciso de auxílio.
Semana passada vivi uma situação bem desagradável, que no primeiro momento me fez ir àslágrimas, mas que depois me fez rir, o que aliás é um bom remédio. Auto-piedade em nada resolve.
Precisei sair a pé. Me marido estava no hospital acompanhando meu sogro que havia sofrido um infarto. Por aqui não passa um miserável de um ônibus (quem diz que Balneário Camboriú é um paraíso?) que me levasse pelo menos até próximo do destino. Fui corajosamente e muito lentamente caminhando, tentando controlar os meus pés. Táxi? Nem pensar, simplesmente eles são poucos por aqui. Na volta, a mesma situação, além da dificuldade de enfrentar sozinha as calçadas ainda tinha que ter a cabeça torrada por um sol inclemente. Em certo momento,não aguentando mais, optei por chamar um moto-táxi, desses que trazem consigo um capacete que pode lhe fazer nascer uma ninhada de piolhos. O motoboy já ficou meio apreensivo ao se deparar comigo, que ainda, desgraças das desgraças, estava de vestido. Subir numa moto é uma ato heroico. Primeiro tenho que tirar os óculos, pois óculos e capacete não se ajustam, então fico cega. Talvez isso seja bom, assim me impede de ver as manobras violentas que eles costumam fazer no trânsito. Para subir , sentar, achar o apoio para os pés é óbvio que necessito de ajuda e o rapaz foi bastante prestativo, inclusive ajeitando meu vestido para que meu bumbum não ficasse exposto.
Mas ao chegar em casa, como fazer para descer? Precisei da delicadeza da zeladora do prédio, que junto com o motorista me içou. Me pegaram literalmente pelas pernas e braços e me colocaram em segurança em terra firme. Sentei-me na calçada e deixei as lágrimas pularem para fora de meus olhos.
Depois de passado o vexame, ri a não mais poder, fiquei imaginando a cena ridícula, mas infelizmente necessária e se alguém me viu, dane-se, já há muito mandei a vergonha para aquele lugar que você sabe muito bem onde é.
PS: QUERIDOS LEITORES, DESCULPEM ALGUNS ERROS, QUE NÃO SÃO DE ORTOGRAFIA, MAS SIM DESTE COMPUTADOR. SE ERRO UMA PALAVRA OU ESQUEÇO DE DIGITAR UMA LETRA E APERTO A TECLA DELETE PARA CONSERTAR, VAI APAGANDO TUDO. ENTÃO SÓ ME RESTAM DUAS OPÇÕES: OU REESCREVO OU DEIXO AS PALAVRAS COLADINHAS. OPTEI, POR PURA PREGUIÇA, PELA SEGUNDA. VOU TENTAR RESOLVER O MAIS BREVE POSSÍVEL
segunda-feira, 12 de janeiro de 2015
OS ANOS PASSARAM E TROUXERAM NOVIDADES
A vida não para, não dá sossego. Cada dia é uma incógnita, com seus bens e seus males, com ganhos e perdas e na minha houve de um tudo, como na de tomo mundo, aliás.
Perdi casa, levada por uma enchente, perdi alguns de meus cachorros, perdi pessoas amadas e ganhei outras. Outros amigos, um verdadeiro amor que me acompanha há quatorze anos, uma casamento de aliança e tudo. Só faltou o bolo, mas iremos sim, a qualquer hora, fazer uma comemoração. Passei por um câncer, por um estado de quase morte, por um período de loucura, onde incendiei minha casa, Ah! meu Deus, só estes últimos sete anos dariam um livro.
Mas vamos voltar ao que interessa, ao que é o verdadeiro foco que me levou a escrever. Não tomarei atalhos, vou direto ao ponto: como comecei a sentir que estava ESTRANHA.
Sim pois foi com estranheza que encarei os primeiros sintomas e não creditei a eles nada que não fosse uma reação a enorme quantidade de remédios que vinha e venho tomando
Já vinha a algum tempo fazendo terapia e sendo medicada. Custei a me adaptar a alguns remédios, sobretudo a um que me fazia sentir como se eu estivesse completamente bêbada. Não, não fazia nenhuma bobagem, não vomitava, apenas passara a andar como se fosse um pudim de cachaça. Vivi muitos constrangimentos, porque não há como diferenciar o andar de uma pessoa embriagada e o meu. Logo eu, que por todas as razões do mundo odeio bebida alcóolica. Embaralhava as pernas, elas não atendiam mais aos meu comandos. Meus pés se trançavam a cada passo e sofri alguns tombos vergonhosos, mesmo estando calçando sapatos sem saltos.
Geralmente os pés eram os membros mais prejudicados e passou a ser corriqueiro eu ter que ficar imobilizada, com meus lindos pezinhos inchados como pães prontos para irem ao forno.
Sentia também que estava "enferrujando". As articulações pareciam carecer de óleo para funcionarem e gradualmente fui perdendo as forças nas mãos. Fui me tornando uma exterminadora de objetos, não tinha força ou segurança para pegar nada. No entanto, até então, achava que eram efeitos colaterais, que passariam com o tempo. Mas minha médica mudou a medicação, crente também que eu melhoraria.
Não sei determinar ao certo quando me dei conta do tremor. Talvez ele já tivesse se instalado, porém não lhe dava atenção, até chegar a um ponto em que comer tornou-se um ato constrangedor, pois o garfo tinha vontade própria e o copo tinha que ser segurado com as duas mãos para chegar até a boca sem que eu derramasse boa parte do líquido na minha roupa.
Novamente creditamos o fato a uma não aceitação das novas medicações. Novamente modificamos o tratamento.
Sei lá que mecanismo se desencadeia em mim diante de certas situações; eu simplesmente não enxergo. Lembro que quando peguei, alguns anos antes o resultado de uma biópsia de uma endoscopia. Fiquei tão feliz. Era apenas uma gastrite. Meus olhos se recusaram a ler a última frase do laudo; "lesão neoplásica no esôfago". Como eu não havia me dado conta daquele diagnóstico? Só quando levei o resultado ao médico, dias depois é que compreendi, ou melhor que abri meus olhos e vi. Se fosse uma pessoa leiga, seria perdoável. A palavrinha neoplasia, para quem não a conhece, nem sempre é identificada com câncer.
Assim também se deu com os sintomas que agora começaram a fazer parte do meu dia a dia. Voltei ao médico, desta vez a um neurologista e não precisou de muito lero-lero para aquilo que eu me recusava a ver: eu estava com Parkinson. Ainda em estado muito inicial, mas Parkinson, sem dúvida.
Tomografia, exames, história pregressa, não havia como escapar.
Se disser que não foi um choque, estaria mentindo vergonhosamente. A depressão se abateu como uma nuvem pesada e carregada sobre mim e se não fosse a terapia, muito provavelmente haveria de ter cometido uma bobagem qualquer. Não, eu não queria passar o mesmo que meu pai havia passado. Aquela experiência fora forte demais, dolorosa demais. Por que eu, meu Deus? Essa pergunta, claro, sem nenhuma resposta, permeava minha cabeça vinte e quatro horas por dia. Não há respostas, simplesmente acontece e aconteceu comigo. Lógico, eu era uma pessoa mais vulnerável, muito embora o fator hereditário não seja dominante.
Comecei o tratamento; mais comprimidos que se juntavam aos tantos outros que já tomava e gradualmente uma sensação de aceitação foi se fixando. Não há cura, é irreversível, sei qual será meu futuro.
Mas de tudo tenho uma certeza: ainda que fique totalmente entrevada, incapacitada, jamais, em tempo algum me submeterei a uma cirurgia. Isso é decisão decidida consciente e racionalmente.
A primeira providência, além do tratamento medicamentoso foi inciar alguma atividade física.
Aqui onde moro há um grupo de terceira idade que faz ginástica duas vezes por semana. Bem apropriado para mim, pois cada um faz aquilo que lhe é possível. Ninguém está em busca de uma barriga de tanquinho ou um bumbum que pareça com a mulher melancia. Todos lá estão em busca de tornar melhor a sua mobilidade, a sua motricidade. A professora sabia do meu quadro e me passava exercícios apropriados.
Confesso que me sentia muito bem lá. Era uma das mais jovens do grupo, afinal tinha companheiros com mais de noventa anos, era portanto, um bebê.
Acreditem ou não, fui pedida em casamento. Só recusei porque já tenho um marido, ótimo por sinal. Mas o pretendente me oferecia uma boa casa, uma vida confortável, (ele recebia duas aposentadorias) e muito, muito carinho. Fiquei tentada, mas ele já tinha na época mais de oitenta anos, era corcunda e embora andasse sempre muito bem arrumadinho, realmente não fazia meu tipo.
Minha negação também levou em conta os tremores que ele apresentava nas mãos, sinais clássicos de Parkinson e você já pensou como seria o simples fato de coar um café sem se queimar? Eu é que não me arriscaria.
Bobagens à parte, acabei por deixar o grupo, pois minha sessão de terapia se chocava com o horário da "jovem" academia e reconheço, no momento precisava mais de musculação e aeróbica que fortalecessem minha mente do que meu corpo.
Perdi casa, levada por uma enchente, perdi alguns de meus cachorros, perdi pessoas amadas e ganhei outras. Outros amigos, um verdadeiro amor que me acompanha há quatorze anos, uma casamento de aliança e tudo. Só faltou o bolo, mas iremos sim, a qualquer hora, fazer uma comemoração. Passei por um câncer, por um estado de quase morte, por um período de loucura, onde incendiei minha casa, Ah! meu Deus, só estes últimos sete anos dariam um livro.
Mas vamos voltar ao que interessa, ao que é o verdadeiro foco que me levou a escrever. Não tomarei atalhos, vou direto ao ponto: como comecei a sentir que estava ESTRANHA.
Sim pois foi com estranheza que encarei os primeiros sintomas e não creditei a eles nada que não fosse uma reação a enorme quantidade de remédios que vinha e venho tomando
Já vinha a algum tempo fazendo terapia e sendo medicada. Custei a me adaptar a alguns remédios, sobretudo a um que me fazia sentir como se eu estivesse completamente bêbada. Não, não fazia nenhuma bobagem, não vomitava, apenas passara a andar como se fosse um pudim de cachaça. Vivi muitos constrangimentos, porque não há como diferenciar o andar de uma pessoa embriagada e o meu. Logo eu, que por todas as razões do mundo odeio bebida alcóolica. Embaralhava as pernas, elas não atendiam mais aos meu comandos. Meus pés se trançavam a cada passo e sofri alguns tombos vergonhosos, mesmo estando calçando sapatos sem saltos.
Geralmente os pés eram os membros mais prejudicados e passou a ser corriqueiro eu ter que ficar imobilizada, com meus lindos pezinhos inchados como pães prontos para irem ao forno.
Sentia também que estava "enferrujando". As articulações pareciam carecer de óleo para funcionarem e gradualmente fui perdendo as forças nas mãos. Fui me tornando uma exterminadora de objetos, não tinha força ou segurança para pegar nada. No entanto, até então, achava que eram efeitos colaterais, que passariam com o tempo. Mas minha médica mudou a medicação, crente também que eu melhoraria.
Não sei determinar ao certo quando me dei conta do tremor. Talvez ele já tivesse se instalado, porém não lhe dava atenção, até chegar a um ponto em que comer tornou-se um ato constrangedor, pois o garfo tinha vontade própria e o copo tinha que ser segurado com as duas mãos para chegar até a boca sem que eu derramasse boa parte do líquido na minha roupa.
Novamente creditamos o fato a uma não aceitação das novas medicações. Novamente modificamos o tratamento.
Sei lá que mecanismo se desencadeia em mim diante de certas situações; eu simplesmente não enxergo. Lembro que quando peguei, alguns anos antes o resultado de uma biópsia de uma endoscopia. Fiquei tão feliz. Era apenas uma gastrite. Meus olhos se recusaram a ler a última frase do laudo; "lesão neoplásica no esôfago". Como eu não havia me dado conta daquele diagnóstico? Só quando levei o resultado ao médico, dias depois é que compreendi, ou melhor que abri meus olhos e vi. Se fosse uma pessoa leiga, seria perdoável. A palavrinha neoplasia, para quem não a conhece, nem sempre é identificada com câncer.
Assim também se deu com os sintomas que agora começaram a fazer parte do meu dia a dia. Voltei ao médico, desta vez a um neurologista e não precisou de muito lero-lero para aquilo que eu me recusava a ver: eu estava com Parkinson. Ainda em estado muito inicial, mas Parkinson, sem dúvida.
Tomografia, exames, história pregressa, não havia como escapar.
Se disser que não foi um choque, estaria mentindo vergonhosamente. A depressão se abateu como uma nuvem pesada e carregada sobre mim e se não fosse a terapia, muito provavelmente haveria de ter cometido uma bobagem qualquer. Não, eu não queria passar o mesmo que meu pai havia passado. Aquela experiência fora forte demais, dolorosa demais. Por que eu, meu Deus? Essa pergunta, claro, sem nenhuma resposta, permeava minha cabeça vinte e quatro horas por dia. Não há respostas, simplesmente acontece e aconteceu comigo. Lógico, eu era uma pessoa mais vulnerável, muito embora o fator hereditário não seja dominante.
Comecei o tratamento; mais comprimidos que se juntavam aos tantos outros que já tomava e gradualmente uma sensação de aceitação foi se fixando. Não há cura, é irreversível, sei qual será meu futuro.
Mas de tudo tenho uma certeza: ainda que fique totalmente entrevada, incapacitada, jamais, em tempo algum me submeterei a uma cirurgia. Isso é decisão decidida consciente e racionalmente.
A primeira providência, além do tratamento medicamentoso foi inciar alguma atividade física.
Aqui onde moro há um grupo de terceira idade que faz ginástica duas vezes por semana. Bem apropriado para mim, pois cada um faz aquilo que lhe é possível. Ninguém está em busca de uma barriga de tanquinho ou um bumbum que pareça com a mulher melancia. Todos lá estão em busca de tornar melhor a sua mobilidade, a sua motricidade. A professora sabia do meu quadro e me passava exercícios apropriados.
Confesso que me sentia muito bem lá. Era uma das mais jovens do grupo, afinal tinha companheiros com mais de noventa anos, era portanto, um bebê.
Acreditem ou não, fui pedida em casamento. Só recusei porque já tenho um marido, ótimo por sinal. Mas o pretendente me oferecia uma boa casa, uma vida confortável, (ele recebia duas aposentadorias) e muito, muito carinho. Fiquei tentada, mas ele já tinha na época mais de oitenta anos, era corcunda e embora andasse sempre muito bem arrumadinho, realmente não fazia meu tipo.
Minha negação também levou em conta os tremores que ele apresentava nas mãos, sinais clássicos de Parkinson e você já pensou como seria o simples fato de coar um café sem se queimar? Eu é que não me arriscaria.
Bobagens à parte, acabei por deixar o grupo, pois minha sessão de terapia se chocava com o horário da "jovem" academia e reconheço, no momento precisava mais de musculação e aeróbica que fortalecessem minha mente do que meu corpo.
VÁRIAS RAZÕES
A partir da morte do meu pai, o pouco que havia de uma família desintegrou-se num mar de desavenças, mágoas, rancores. Cada um, de seu jeito, tentava reformular uma estrutura que não mais existia.Não que ele fosse o pilar sustentador de tudo, mas o sofrimento pelo qual ele havia passado e nós também, ao invés de nos unir, acabou por nos deixar mais afastados, até chegar ao ponto da separação completa.
Não posso negar que havia um esforço para voltar à normalidade, mas como nunca fomos um núcleo familiar muito normal, esse esforço foi absolutamente vão.
Mas estes escritos não têm por função contar a respeito da minha vida familiar mais do que já foi feito. O propósito é outro, desde o início. Quando decidi relatar o calvário pelo qual passamos, não tinha e não tenho ainda a intenção de remexer em outras dores que não fossem as causadas pela doença.
Hoje, só para constar, com exceção de um tio paterno, não existe mais ninguém. Todos se foram, só ficaram os filhos e netos e cada um leva uma vida completamente separada uns dos outros, por motivos que só a nós pertencem.
Por caminhos tortuosos, por mais incrível que possa parecer, todos estão certos e todos estão errados.
Loucura ? É bem possível, mas cada um de nós, seguiu seu caminho e não há mais motivos para querer reatar laços, simplesmente porque a corda foi rompida, não há como remendá-la.
A razão de escrever se deu a partir da leitura do livro "Quem, eu?" de um jovem, Fernando Aguzzoli. Comprei o livro como sempre faço ao chegar em Canela, no Rio Grande do Sul. Já virou uma instituição, chegar à cidade almoçar no Empório Canela ( recomendo muitíssimo) e depois adquirir uns livros na livraria que tem no próprio restaurante. Sempre tive o costume de ler muito, hábito dos bons que nossa família nos inculcou. Esse ano, porém, nenhum título me chamava a atenção. Estou numa fase que já não me atrai romances, prefiro biografias, histórias reais, costumes. Já estava por desistir, quando no meio de uma pilha dei de cara com o exemplar. Era o último. Tinha lido várias críticas a respeito da história de um garoto de 23 anos que abandona tudo para cuidar de uma avó com Alzheimer. Confesso que pensei em encontrar naquelas páginas um conjunto de pieguices que me faria largar tudo antes de terminar o primeiro capítulo. Quanto engano. Não se
tratava somente de uma história de amor e doação, era antes de tudo a tentativa (bem sucedida) de demonstrar como conviver com um paciente portador desse mal. Era sobretudo ensinar com maturidade como enfrentar o sofrimento, mostrar que ele pode ser um fator de agregação e dotar o que resta de uma vida que já não se encontra na realidade com um certo toque de humor.
A família não sofreu? Sim, muito. Nunca, em circunstância nenhuma é fácil encarar a finitude, por mais real e única que ela seja. Alguém pode me provar o contrário? Alguém já ficou para semente?
Bom, mas a paciente tinha Alzheimer e não Parkinson e mesmo sendo ambas, doenças degenerativas do cérebro, os sintomas são diferentes. Bom, no entanto, as duas são devastadoras, cada uma a seu modo.
Uma leva o paciente para longe da realidade e ela pelo menos no início, tem uma leve consciência de um esquecimento, de umas confusões que vem fazendo no seu dia a dia, até que não lhe sobre mais nem um pingo de noção do que é certo ou errado, do que é real ou não. É o "alemão", como diz o jargão médico. Já a outra, não leva ao esquecimento, mas sim, à incapacidade física. a impossibilidade de uma simples ato como pentear os cabelos ou abotoar uma blusa.
Quer saber qual eu prefiro ? A primeira. Se é para perder minha autonomia, opto por não saber o que estou fazendo. A consciência de que estou perdendo o domínio sobre as minhas funções corporais é muito mais destrutiva. O Parkinson não nos dá o alento de pelo menos esquecer que a cada dia que passa nos tornamos um pouco mais dependentes, um pouco mais incapazes. Em ambas nos tornamos bebês, mas se em uma não sabemos o que fazer com uma mamadeira, a outra nos impossibilita de pegá-la, apesar de saber para que serve.
Voltei da viagem decidida a escrever. Não um manual de instruções, mas um compartilhamento, esclarecimentos, tanto para o paciente, quanto para a família. Sim, porque a essa altura, já tem mais de um ano que sou PARKINSONIANA. Foi a minha herança, uma triste e irreversível herança que me foi deixada em testamento e o qual não posso contestar ou anular.
Não posso negar que havia um esforço para voltar à normalidade, mas como nunca fomos um núcleo familiar muito normal, esse esforço foi absolutamente vão.
Mas estes escritos não têm por função contar a respeito da minha vida familiar mais do que já foi feito. O propósito é outro, desde o início. Quando decidi relatar o calvário pelo qual passamos, não tinha e não tenho ainda a intenção de remexer em outras dores que não fossem as causadas pela doença.
Hoje, só para constar, com exceção de um tio paterno, não existe mais ninguém. Todos se foram, só ficaram os filhos e netos e cada um leva uma vida completamente separada uns dos outros, por motivos que só a nós pertencem.
Por caminhos tortuosos, por mais incrível que possa parecer, todos estão certos e todos estão errados.
Loucura ? É bem possível, mas cada um de nós, seguiu seu caminho e não há mais motivos para querer reatar laços, simplesmente porque a corda foi rompida, não há como remendá-la.
A razão de escrever se deu a partir da leitura do livro "Quem, eu?" de um jovem, Fernando Aguzzoli. Comprei o livro como sempre faço ao chegar em Canela, no Rio Grande do Sul. Já virou uma instituição, chegar à cidade almoçar no Empório Canela ( recomendo muitíssimo) e depois adquirir uns livros na livraria que tem no próprio restaurante. Sempre tive o costume de ler muito, hábito dos bons que nossa família nos inculcou. Esse ano, porém, nenhum título me chamava a atenção. Estou numa fase que já não me atrai romances, prefiro biografias, histórias reais, costumes. Já estava por desistir, quando no meio de uma pilha dei de cara com o exemplar. Era o último. Tinha lido várias críticas a respeito da história de um garoto de 23 anos que abandona tudo para cuidar de uma avó com Alzheimer. Confesso que pensei em encontrar naquelas páginas um conjunto de pieguices que me faria largar tudo antes de terminar o primeiro capítulo. Quanto engano. Não se
tratava somente de uma história de amor e doação, era antes de tudo a tentativa (bem sucedida) de demonstrar como conviver com um paciente portador desse mal. Era sobretudo ensinar com maturidade como enfrentar o sofrimento, mostrar que ele pode ser um fator de agregação e dotar o que resta de uma vida que já não se encontra na realidade com um certo toque de humor.
A família não sofreu? Sim, muito. Nunca, em circunstância nenhuma é fácil encarar a finitude, por mais real e única que ela seja. Alguém pode me provar o contrário? Alguém já ficou para semente?
Bom, mas a paciente tinha Alzheimer e não Parkinson e mesmo sendo ambas, doenças degenerativas do cérebro, os sintomas são diferentes. Bom, no entanto, as duas são devastadoras, cada uma a seu modo.
Uma leva o paciente para longe da realidade e ela pelo menos no início, tem uma leve consciência de um esquecimento, de umas confusões que vem fazendo no seu dia a dia, até que não lhe sobre mais nem um pingo de noção do que é certo ou errado, do que é real ou não. É o "alemão", como diz o jargão médico. Já a outra, não leva ao esquecimento, mas sim, à incapacidade física. a impossibilidade de uma simples ato como pentear os cabelos ou abotoar uma blusa.
Quer saber qual eu prefiro ? A primeira. Se é para perder minha autonomia, opto por não saber o que estou fazendo. A consciência de que estou perdendo o domínio sobre as minhas funções corporais é muito mais destrutiva. O Parkinson não nos dá o alento de pelo menos esquecer que a cada dia que passa nos tornamos um pouco mais dependentes, um pouco mais incapazes. Em ambas nos tornamos bebês, mas se em uma não sabemos o que fazer com uma mamadeira, a outra nos impossibilita de pegá-la, apesar de saber para que serve.
Voltei da viagem decidida a escrever. Não um manual de instruções, mas um compartilhamento, esclarecimentos, tanto para o paciente, quanto para a família. Sim, porque a essa altura, já tem mais de um ano que sou PARKINSONIANA. Foi a minha herança, uma triste e irreversível herança que me foi deixada em testamento e o qual não posso contestar ou anular.
domingo, 11 de janeiro de 2015
COMO UM DIA DE DOMINGO....
Nunca gostei de domingos. Até ao meio dia eles são suportáveis e a sensação de desamparo que eles me causam após este horário, senti-as em outros lugares do mundo. Até em Paris..
Nada ao amanhecer, daquele domingo, quatorze de dezembro de 1997 me levava a crer que o dia seria diferente.
Calor, abafado e úmido, sem sol, prenunciando uma chuva e acabou por não vir.
Fiz as rotinas matinais com calma e me dirigi ao apartamento de meus pais, cuja porta ficava em frente a minha. Esqueci de dizer que quando meu pai saiu do Hospital, ambas, minha mãe e eu, saímos dos apartamentos em que morávamos,embora muito perto um do outro e alugamos dois, num prédio novo, primeiro andar, com direito a um enorme terraço, onde meu pai poderia tomar sol e onde estaríamos a dois míseros passos de distância. Isso me pouparia de ter que enfrentar as ruas de madrugada, em caso de alguma necessidade, como muitas vezes ocorreu.
A noite havia sido muito complicada. Vitor, o cuidador, não teve um só momento de sono. meu pai estava agitado, agoniado com o excesso de secreção que precisava ser aspirada continuamente.
Seus sinais vitais estavam caindo vertiginosamente e sua respiração, mesmo aliviada pelo oxigênio, era sofrida.
Nem precisei perguntar ao Vitor: a resposta estava em seu olhar, assim como estava nos olhos já embaçados de meu pai. Sabíamos, era questão de horas. Tratamos de preparar minha mãe para o que estava por vir, mas ela parecia anestesiada. Não avisamos ninguém, não telefonamos para nenhum parente ou filho. Ficamos apenas nós, em nossas solidões. A rotina não foi mudada: minha mãe, como sempre limpou a casa, fez o almoço, recolhemos e lavamos as roupas sujas da noite, ele foi higienizado, teve seus curativos trocados, recebeu sua alimentação. mesmo sem dizermos nada uns aos outros, queríamos que ele se fosse num ambiente totalmente conhecido, com os mesmos hábitos.
Não chorávamos, apenas estávamos mais calados.
O dia se passou assim, num ir e vir de seu quarto. Após o almoço, procurei tirar um pequeno descanso. Tinha certeza que a noite seria longa. Vitor também repousou um pouco, estava exausto.
Em minha cabeça, não vou negar, não vou me eximir, sabia que havia muitas maneiras de acabar com aquele calvário, mas jamais, em tempo algum, ceifaria a vida de meu pai. Para mim era fácil, eu trabalhava em um Hospital, tinha acesso a todos os medicamentos que propiciariam isso, mas a única coisa que fiz foi, ao final da tarde ir até meu local de trabalho, pegar uma ampola de Valium e água destilada. Meu desejo era apenas sedá-lo. Passei a tarde inteira ao seu lado. Conversava. Dizia-lhe que ele podia ir, que iríamos liberá-lo daquele corpo enfermo, que ele já havia cumprido seu papel por aqui. Pedi perdão por todas as brigas, por todos os momentos em que fomos infelizes, mas sobretudo dizia o quanto o havia amado e que também o meu perdão se fazia presente, pois muitas vezes ele não havia sido o pai com que sonhara. Essas coisas eram pequenas demais, não cabiam naquele momento. Relembrei vivências, recordações de infância, da sua mania de achar que o mundo se acabaria e que por isso era preciso deixar a despensa e as geladeiras sempre abarrotadas de víveres. agradeci por ele ter sido o pai que minha filha não teve
Falamos muito, em voz alta e em pensamento. Sabia que ele me entendia. Nunca estivemos tão próximos, nunca o senti tão pai e eu tão filha
Tomada de uma calma e antes que Vitor encerrasse seu plantão, fui até o Hospital e peguei o que necessitava. Não queria, de modo algum que ele visse a foice (será que ela existe mesmo?) da morte e também não desejava assistir impassível seus últimos estertores.
Queria a paz, um último momento sem desespero, uma partida tranquila, com a certeza de que um dia nos veríamos novamente.
Quando retornei, Vitor já estava de saída e Osmira deveria chegar em breve. Minha mãe estava ao telefone, falando com meu tio ao mesmo tempo em que assistia ao programa do Faustão. Não sei se ela tinha a exata noção do que estava se passando no quarto ao lado.
Osmira demorou a chegar, ela que era sempre tão pontual. Foi uma benção. Enquanto diluía a ampola de Valium na água destilada, continuava aquela conversa solitária. Desconectei o equipo do soro e infundi lentamente a medicação. Queria apenas um sono, um descanso, muito embora tivesse a plena convicção que só a morte o aliviaria. Mas não, eu não era em absoluto uma discípula de Hitler empreendendo a solução final.
Antes de infundir o Valium, verifiquei sua pressão que nesse momento estava em em 3x2mmg de mercúrio e seu pulso não passava de 15 batimentos por minuto. O quê poderia esperar?
Enquanto lentamente injetava o remédio na veia, permaneci naquela falação suave e surrealista. Rezava, pedia que espíritos de luz o viessem acompanhar na jornada definitiva.
Percebi que os segundos finais estavam chegando, chamei por minha mãe, ela não atendeu, continuou grudada no telefone. Tive que arrancar o fone com violência de suas mãos. Queria que ela lhe dissesse umas últimas palavras e ela as disse: "J. tu não sabes o quanto te amei". Ele cerrou os olhos no exato momento em que Osmira adentrava no quarto. Então as lágrimas puderam escorrer sem pudor, sem estarem trancadas num banheiro ou num quarto com a porta fechada.
Tive o cuidado de de não deixar minha filha, então com dezessete anos assistir a cena, Chamei-a quando tudo estava acabado. Sua reação foi sair porta afora em busca de consolo com sua melhor amiga. Deixei-a ir. Acabara-se. Aos sessenta e sete anos, meu pai se fora. "Acabou", era tudo o que eu conseguia dizer para as pessoas que começavam a chegar. "Acabou".
Nada ao amanhecer, daquele domingo, quatorze de dezembro de 1997 me levava a crer que o dia seria diferente.
Calor, abafado e úmido, sem sol, prenunciando uma chuva e acabou por não vir.
Fiz as rotinas matinais com calma e me dirigi ao apartamento de meus pais, cuja porta ficava em frente a minha. Esqueci de dizer que quando meu pai saiu do Hospital, ambas, minha mãe e eu, saímos dos apartamentos em que morávamos,embora muito perto um do outro e alugamos dois, num prédio novo, primeiro andar, com direito a um enorme terraço, onde meu pai poderia tomar sol e onde estaríamos a dois míseros passos de distância. Isso me pouparia de ter que enfrentar as ruas de madrugada, em caso de alguma necessidade, como muitas vezes ocorreu.
A noite havia sido muito complicada. Vitor, o cuidador, não teve um só momento de sono. meu pai estava agitado, agoniado com o excesso de secreção que precisava ser aspirada continuamente.
Seus sinais vitais estavam caindo vertiginosamente e sua respiração, mesmo aliviada pelo oxigênio, era sofrida.
Nem precisei perguntar ao Vitor: a resposta estava em seu olhar, assim como estava nos olhos já embaçados de meu pai. Sabíamos, era questão de horas. Tratamos de preparar minha mãe para o que estava por vir, mas ela parecia anestesiada. Não avisamos ninguém, não telefonamos para nenhum parente ou filho. Ficamos apenas nós, em nossas solidões. A rotina não foi mudada: minha mãe, como sempre limpou a casa, fez o almoço, recolhemos e lavamos as roupas sujas da noite, ele foi higienizado, teve seus curativos trocados, recebeu sua alimentação. mesmo sem dizermos nada uns aos outros, queríamos que ele se fosse num ambiente totalmente conhecido, com os mesmos hábitos.
Não chorávamos, apenas estávamos mais calados.
O dia se passou assim, num ir e vir de seu quarto. Após o almoço, procurei tirar um pequeno descanso. Tinha certeza que a noite seria longa. Vitor também repousou um pouco, estava exausto.
Em minha cabeça, não vou negar, não vou me eximir, sabia que havia muitas maneiras de acabar com aquele calvário, mas jamais, em tempo algum, ceifaria a vida de meu pai. Para mim era fácil, eu trabalhava em um Hospital, tinha acesso a todos os medicamentos que propiciariam isso, mas a única coisa que fiz foi, ao final da tarde ir até meu local de trabalho, pegar uma ampola de Valium e água destilada. Meu desejo era apenas sedá-lo. Passei a tarde inteira ao seu lado. Conversava. Dizia-lhe que ele podia ir, que iríamos liberá-lo daquele corpo enfermo, que ele já havia cumprido seu papel por aqui. Pedi perdão por todas as brigas, por todos os momentos em que fomos infelizes, mas sobretudo dizia o quanto o havia amado e que também o meu perdão se fazia presente, pois muitas vezes ele não havia sido o pai com que sonhara. Essas coisas eram pequenas demais, não cabiam naquele momento. Relembrei vivências, recordações de infância, da sua mania de achar que o mundo se acabaria e que por isso era preciso deixar a despensa e as geladeiras sempre abarrotadas de víveres. agradeci por ele ter sido o pai que minha filha não teve
Falamos muito, em voz alta e em pensamento. Sabia que ele me entendia. Nunca estivemos tão próximos, nunca o senti tão pai e eu tão filha
Tomada de uma calma e antes que Vitor encerrasse seu plantão, fui até o Hospital e peguei o que necessitava. Não queria, de modo algum que ele visse a foice (será que ela existe mesmo?) da morte e também não desejava assistir impassível seus últimos estertores.
Queria a paz, um último momento sem desespero, uma partida tranquila, com a certeza de que um dia nos veríamos novamente.
Quando retornei, Vitor já estava de saída e Osmira deveria chegar em breve. Minha mãe estava ao telefone, falando com meu tio ao mesmo tempo em que assistia ao programa do Faustão. Não sei se ela tinha a exata noção do que estava se passando no quarto ao lado.
Osmira demorou a chegar, ela que era sempre tão pontual. Foi uma benção. Enquanto diluía a ampola de Valium na água destilada, continuava aquela conversa solitária. Desconectei o equipo do soro e infundi lentamente a medicação. Queria apenas um sono, um descanso, muito embora tivesse a plena convicção que só a morte o aliviaria. Mas não, eu não era em absoluto uma discípula de Hitler empreendendo a solução final.
Antes de infundir o Valium, verifiquei sua pressão que nesse momento estava em em 3x2mmg de mercúrio e seu pulso não passava de 15 batimentos por minuto. O quê poderia esperar?
Enquanto lentamente injetava o remédio na veia, permaneci naquela falação suave e surrealista. Rezava, pedia que espíritos de luz o viessem acompanhar na jornada definitiva.
Percebi que os segundos finais estavam chegando, chamei por minha mãe, ela não atendeu, continuou grudada no telefone. Tive que arrancar o fone com violência de suas mãos. Queria que ela lhe dissesse umas últimas palavras e ela as disse: "J. tu não sabes o quanto te amei". Ele cerrou os olhos no exato momento em que Osmira adentrava no quarto. Então as lágrimas puderam escorrer sem pudor, sem estarem trancadas num banheiro ou num quarto com a porta fechada.
Tive o cuidado de de não deixar minha filha, então com dezessete anos assistir a cena, Chamei-a quando tudo estava acabado. Sua reação foi sair porta afora em busca de consolo com sua melhor amiga. Deixei-a ir. Acabara-se. Aos sessenta e sete anos, meu pai se fora. "Acabou", era tudo o que eu conseguia dizer para as pessoas que começavam a chegar. "Acabou".
RELATOS PARKINSONIANOS - 18- TEMPO SE ESCOA
Ah! o tempo, esse senhor implacável, misterioso, que se esconde atrás dos ponteiros de um relógio, o qual não podemos pegar, não podemos fazê-lo parar, retroceder, adiantar. Sim, ele existe e sua presença é sentida pelas marcas que se cravam em nossa pele e em nossa alma.
Dizer que o tempo é o melhor remédio, que a tudo cura, é uma deslavada mentira. Você pode apagar as rugas de seu corpo com plásticas, botox, silicone, malhação, dietas miraculosas que retardam o estrago. Para o espírito, você pode criar uma caixa, enfiá-lo lá dentro e o deixar esquecido, mas às vezes, até sem querer, a tampa da caixa se abre e ele escapole e traz consigo tudo aquilo que você não quer lembrar. Não, não há como negar sua existência. Quanto mais eu escrevo, mais o passado se torna presente, mais o tempo retorna e vou recordando tudo o que vivi com a mesma intensidade de quando tudo aconteceu. Nada me escapa. As palavras saem das pontas dos dedos. Tudo ainda é vivo e dói. Todos os processos que usei para criar um esquecimento se desfazem.
Durante todo o ano que passou, tive dois momentos de afastamento; quando fui obrigada a tirar férias e o dia do meu aniversário. Nesta data, fiz de conta que era um dia normal.Peguei minha mãe, minha filha e saímos para um passeio fora da cidade. Passeamos por São Francisco do Sul, por Joinville e quem nos visse não diria que em casa tínhamos deixado um pai cujo tempo estava levando. Éramos a visão perfeita de três mulheres de gerações diferentes, fazendo turismo, tirando fotos com sorrisos congelados. Eu comemorava quarenta anos. Comemorava?
Foi como matar um dia de aula, escondidas, fizemos gazeta. Por algumas horas nos permitimos esquecer, viver, simplesmente.
Dezembro já estava chegando e com ele a piora inexorável de meu pai.
Já tínhamos decidido que não haveria mais internações. Sua partida se daria em casa, no seu quarto,de onde ele podia ver a bandeira do Corínthians, poderia sentir os aromas que vinham da cozinha, os barulhos comuns da movimentação da casa, nossas vozes, as músicas que ele gostava
Ele não iria se despedir da vida num ambiente frio e hostil de uma UTI, porque seria para lá que ele iria. Seu estado não permitiria outra opção.
Não sou absolutamente contra a UTI, muito pelo contrário, mas tenho o bom senso de saber que investir pesadamente num paciente cuja morte já há muito foi decretada, seria uma completa falta de bom senso. Lá ele seria submetido a vários procedimentos invasivos, seria entubado, ligado ao respirador e assim ficaria, cheio de eletrodos, sondas, submetido à hemodiálise e conectado a um monitor que em alguma momento apitaria, sinalizando através de uma linha reta que não havia mais sinais vitais. Ele estaria morto e muito provavelmente, não haveria uma mão segurando a sua para para lhe dar adeus.
Dia a dia ele foi piorando, foi ficando mais edemaciado, (inchado) por falta de proteínas, a pele começou a se desprender do corpo, ficando fina como um papel de seda. Sua respiração era difícil, agora estava permanentemente ligado ao oxigênio e um edema agudo dos pulmões enchia-lhe os órgãos de líquido,enquanto sua função renal simplesmente sumia.
Muitas vezes, nesse período crítico eu me questionava se minha atitude estava sendo correta, mas eram momentos curtos; a compaixão me obrigava a deixá-lo ali. Uma UTI só faria prolongar um inútil e solitário sofrimento que se acabaria num telefonema avisando que ele fora a óbito.
Ele iria sim, não tínhamos qualquer dúvida, mas ao nosso lado. Pelo menos ao lado de quem esteve sempre presente. E foi assim que se deu.
Dizer que o tempo é o melhor remédio, que a tudo cura, é uma deslavada mentira. Você pode apagar as rugas de seu corpo com plásticas, botox, silicone, malhação, dietas miraculosas que retardam o estrago. Para o espírito, você pode criar uma caixa, enfiá-lo lá dentro e o deixar esquecido, mas às vezes, até sem querer, a tampa da caixa se abre e ele escapole e traz consigo tudo aquilo que você não quer lembrar. Não, não há como negar sua existência. Quanto mais eu escrevo, mais o passado se torna presente, mais o tempo retorna e vou recordando tudo o que vivi com a mesma intensidade de quando tudo aconteceu. Nada me escapa. As palavras saem das pontas dos dedos. Tudo ainda é vivo e dói. Todos os processos que usei para criar um esquecimento se desfazem.
Durante todo o ano que passou, tive dois momentos de afastamento; quando fui obrigada a tirar férias e o dia do meu aniversário. Nesta data, fiz de conta que era um dia normal.Peguei minha mãe, minha filha e saímos para um passeio fora da cidade. Passeamos por São Francisco do Sul, por Joinville e quem nos visse não diria que em casa tínhamos deixado um pai cujo tempo estava levando. Éramos a visão perfeita de três mulheres de gerações diferentes, fazendo turismo, tirando fotos com sorrisos congelados. Eu comemorava quarenta anos. Comemorava?
Foi como matar um dia de aula, escondidas, fizemos gazeta. Por algumas horas nos permitimos esquecer, viver, simplesmente.
Dezembro já estava chegando e com ele a piora inexorável de meu pai.
Já tínhamos decidido que não haveria mais internações. Sua partida se daria em casa, no seu quarto,de onde ele podia ver a bandeira do Corínthians, poderia sentir os aromas que vinham da cozinha, os barulhos comuns da movimentação da casa, nossas vozes, as músicas que ele gostava
Ele não iria se despedir da vida num ambiente frio e hostil de uma UTI, porque seria para lá que ele iria. Seu estado não permitiria outra opção.
Não sou absolutamente contra a UTI, muito pelo contrário, mas tenho o bom senso de saber que investir pesadamente num paciente cuja morte já há muito foi decretada, seria uma completa falta de bom senso. Lá ele seria submetido a vários procedimentos invasivos, seria entubado, ligado ao respirador e assim ficaria, cheio de eletrodos, sondas, submetido à hemodiálise e conectado a um monitor que em alguma momento apitaria, sinalizando através de uma linha reta que não havia mais sinais vitais. Ele estaria morto e muito provavelmente, não haveria uma mão segurando a sua para para lhe dar adeus.
Dia a dia ele foi piorando, foi ficando mais edemaciado, (inchado) por falta de proteínas, a pele começou a se desprender do corpo, ficando fina como um papel de seda. Sua respiração era difícil, agora estava permanentemente ligado ao oxigênio e um edema agudo dos pulmões enchia-lhe os órgãos de líquido,enquanto sua função renal simplesmente sumia.
Muitas vezes, nesse período crítico eu me questionava se minha atitude estava sendo correta, mas eram momentos curtos; a compaixão me obrigava a deixá-lo ali. Uma UTI só faria prolongar um inútil e solitário sofrimento que se acabaria num telefonema avisando que ele fora a óbito.
Ele iria sim, não tínhamos qualquer dúvida, mas ao nosso lado. Pelo menos ao lado de quem esteve sempre presente. E foi assim que se deu.
sábado, 10 de janeiro de 2015
RELATOS PARKINSONIANOS - 17- MEU PAI NÃO ME PERTENCE
Quando alguém da família, adoece desde um simples resfriado
que a põe de molho com o nariz escorrendo por uma semana, até uma patologia
grave e sobretudo, sem possibilidade de cura, esse doente deveria pertencer a
todos os membros familiares.
Digo “deveria”, porque na maioria dos casos, não é isto que
acontece, exceto se você tem a felicidade de pertencer a uma família unida por laços muito fortes de amor, de
compreensão, de doação, onde todos, de alguma forma, contribuem para aliviar a
carga.
Hoje, acredito, esta postura me parece cada vez mais rara.
Posso enumerar milhões de causas, como trabalho, medo de encarar o doente,
indiferença, a existência de alguém que possa cumprir a difícil tarefa, mas
penso, sinceramente, que isso ocorre porque e principalmente o fio que une esta
família é muito fino.
Quando nasce uma criança, é óbvio que toda a rotina da casa
passa a girar em torno dela. Horários para a alimentação, para a higiene, o
banho de sol, a dificuldade em lidar com as cólicas, o cuidado para que o bebê
arrote após a amamentação.
Muito embora o nascimento seja quase sempre um motivo de
alegria, não se pode esquecer que junto com ele vem uma série de temores, um
cansaço, uma impossibilidade de uma noite de sono, um choro que não se sabe
identificar a causa.
Muitos pais, atualmente, dividem esses percalços com a mãe,
ou há uma avó que se presta a ajudar ou ainda, se houver condições financeiras
adequadas existe a possibilidade de se contratar uma babá, ou uma enfermeira.
Com todo esse aparato, no entanto, nem tudo são flores,
mas um bebê é um ser peso pena. É fácil
você manuseá-lo, colocar no colo,
vira-lo de barriguinha para baixo para massagear e aliviar as cólicas,
cantar suaves canções para fazê-lo dormir.
Mas o quê fazer com um bebê de aproximadamente 1.80m. que
mesmo magro, ainda assim, é pesado? O quê fazer quando não se sabe o que ele
sente, pois não há qualquer sinal de comunicação. Como trocar as fraldas, sem
ter que refazer os curativos, pois suas fezes não são sólidas, mas sim pastosas
ou líquidas e se espalham com um rio caudaloso, invadindo até os lençóis. Tudo
isso várias vezes ao dia, inclusive de madrugada?
E muitas vezes, passa-se a noite em claro, pois a sonda que
o alimenta obstruiu e há que se trocá-la, ele está se afogando nas secreções
que se acumulam na traqueotomia e há que
se aspirar, causando dor e desconforto. É preciso também controlar a
alimentação, sua dieta é líquida, não se pode deixá-lo longos períodos de
estômago vazio, controlar o gotejamento do soro, perceber sua respiração e
colocar o santo oxigênio que o manterá vivo. E ainda, mudá-lo de posição a cada
duas horas, para que não haja mais escaras, colocar travesseiros e almofadas
entre suas pernas e tornozelos. Só o fato de trocá-lo de posição na cama já
exige uma força física monumental. Lembre-se, ele não é um bebê, mas um homem.
E de manhã recomeçar tudo: banho, barba, cortar as unhas,
trocar a roupa de cama, levá-lo para ficar um pouco sentado na poltrona, massagear
seus membros para facilitar a circulação. Mantê-lo limpo e cheiroso, com a
roupa de cama e seu pijama sempre limpos e retornar a todos os cuidados já
citados acima.
Minha mãe nunca foi uma pessoa dotada de sangue frio com
relação à visão de uma ferida, por mais simples que ela fosse. Também não
suportava nem pensar em trocar suas fraldas, acho que vomitaria em cima dele.
Posso culpá-la? Não. Era da sua natureza. Assim, quando ele
já estava com todos os cuidados feitos, então ela entrava no quarto e fazia
sempre as mesmas perguntas, como se ele pudesse respondê-las: “oi pai, como
passou a noite? Dormiu bem?” Fazei um carinho no rosto e voltava para suas
atividades. Em algumas raras ocasiões, quando por ventura ficava sozinha com
ele, conseguia a custa de muito sacrifício infundir a alimentação através da
sonda. Simplesmente ela não tinha condições emocionais de atendê-lo.
Pouquíssimas vezes a vi chorando, ela criara para si uma couraça, uma proteção
necessária e hoje posso compreender imprescindível para conseguir sobreviver.
Mesmo para mim, a convivência era difícil. Eu agora estava
do outro lado, eu era a “família”, aquela família que nós, muitas vezes no
ofício do dia a dia, não levamos muito em consideração.
Durante todo o tempo em que meu pai esteve vivo, eu
precisava me dividir em muitas: era a enfermeira que tinha que trabalhar no
Hospital, e que por mais que todos lá entendessem a minha situação, eu não podia
deixar de cumprir o meu papel de funcionária, continuava a duras penas manter certa
frieza carinhosa no trato com ele, quando chegava em casa, afinal não podia
mostrar a ele o desespero que me consumia, então chegava a hora de me afastar,
tomar um banho e ali sim, deixar que lágrimas,
revolta e dor se misturassem com a água do chuveiro.
Sim, é verdade, devo tudo aos cuidadores. Sem eles não
teríamos agüentado um dia sequer. Mas onde estavam meus irmãos? Eu precisava
das mãos deles para me manter em pé, para me levantar a cada vez que achava que
não ia conseguir. Minha mãe precisava deles e sobretudo, meu pai.
Infelizmente eles raramente estavam por perto. Eu não
conseguia conceber o afastamento e provavelmente, nunca conseguirei.
Outro dia perguntei a um de meus irmãos, quantas vezes ele
havia visto nosso pai? Ele me respondeu de pronto: “ poucas, umas cinco ou seis
vezes”. EM MAIS DE UM ANO!!!!
Afinal ele tinha uma família, mulher filhos, trabalho (não,
ele não era empregado, tinha seu próprio negócio). O outro praticamente recém
casado aparecia vez em quando e nos
dizia que sempre que precisássemos dele, era só chamar. Ora, isso não precisava
ser dito, não havia necessidade de um chamamento, havia sim a necessidade da
presença.
A outra morava no Rio de Janeiro, é verdade, bem mais longe
e ainda assim veio algumas vezes, mas nesse período, em que ela poderia ter
tirado uma licença, com era seu costume, tirou foi uns dias, junto com seu
então marido para viajar para o Nordeste, “para espairecer”.
Agora, depois de muita terapia, posso chegar de novo àquela
velha conclusão: cada um só dá o que pode e quer.
Mas isso não me levará ao perdão. Nunca, jamais, em tempo
algum eu esquecerei o abandono, o egoísmo.
E digo isso sem uma nota de culpa. Podem me julgar, podem me
condenar, há muito deixei de me preocupar com o que pensam de mim.
E não adianta a negação, não adianta dizer que eu quero me
fazer de “vitima”. Muita, muita gente mesmo, acompanhou e sabe o que se
passava.
Queria ter a benevolência, de fato queria, acho que se
tirasse essa mágoa de mim, eu poderia me sentir melhor. Mas não quero e nem
posso.
Sou humana e não escondo de ninguém os meus defeitos e um
deles é o fato de não conseguir perdoar. Não sou Cristo para dar a outra face.
Meu pai tinha quatro filhos, mas só eu fiquei, do começo ao
fim. Ele pertencia a toda a família, mas neste caso a família se constituía de
minha mãe, dos cuidadores, dos amigos
que não me abandonaram e eu.
Torno a perguntar: ONDE ESTAVA WALLY???
sexta-feira, 9 de janeiro de 2015
RELATOS PARKINSONIANOS - 16 - A RAZÃO ENFIM VENCE
Aos poucos, com o correr dos dias a razão foi dando lugar à emoção. Desde o primeiro momento, em que recebi o telefonema de minha mãe, de que meu pai havia entrado em coma, eu tivera a certeza plena de que seu quadro era irreversível, mas eu me recusava a ver, a acreditar. Continuava, a despeito de todas as provas, acreditando num milagre.
Acho que a ficha só caiu mesmo quando o médico mais antigo do Hospital Santa Isabel faleceu. Na capela, onde ele estava sendo velado, uma amiga, também enfermeira, disse-me em tom muito condoído que em breve seria eu a estar velando meu pai.
Até então, o sentimento de filha se sobrepunha à racionalidade da medicina.Nada, nada mais poderia ser feito a não ser esperar a derradeira hora.
Isso se deu mais ou menos em agosto e meu estado era deplorável. Minha chefe, certo dia me chamou e me obrigou a tirar uns dias de férias, mesmo não estando na hora. Pediu que eu viajasse, que saísse de Blumenau, que por algum tempo tentasse me impôr alguns momentos de normalidade.
Fui para casa de uma amiga, em Florianópolis e ali fiquei por duas semanas. Mas aqueles poucos dias nada representavam perto dos meses em que eu estava convivendo com a dor. Acompanhei a morte da lady Di, passava os dias em frente à televisão, acho que era uma forma de me conectar com a realidade. Não adiantava fugir, não havia uma porta mágica que se abrisse pela qual eu pudesse sair.
Voltei decidida a fazer justiça. Entrei em contato com uma Associação, em São Paulo que tratava de erros médicos e para lá fui. Fiquei então sabendo que o tal cirurgião já era responsável por outros casos de insucesso, mas todo o processo teria que correr em São Paulo e como sempre, a única pessoa apta a fazer isso era eu. Mas como? Eu precisava trabalhar, não podia me ausentar e além disso, os custos das constantes viagens não eram poucos e nós já estávamos praticamente falidos. Mas o real motivo de eu não dar prosseguimento ao processo foi o cruel corporativismo entre os médicos. Malditos, malditos médicos que mesmo tendo a certeza do erro cometido, não podiam ferir a "ética".
Sei que eles são homens e portanto, passíveis de errar, mas jamais poderia aceitar a negligência, o descaso,o desrespeito. Foi muito fácil para aquele que levou meu pai à morte, embarcar numa primeira classe e fugir para os Estados Unidos. E nós, para onde iríamos escapar?
Simplesmente não havia rota de fuga..
Nunca me senti tão só, tão impotente, tão inútil.
Eu assistia de camarote à morte de meu pai.
Até então eu isentei, nesses relatos a participação, ou melhor, a não participação da minha família.
Quando comecei a escrever, prometi a mim mesma deixar essa questão de fora e realmente, não vou me estender nela. Mas eu torno a perguntar: onde estavam todos?
Ora, cada um seguindo suas vidas. saindo, se divertindo, fazendo raras visitas, como se estranhos fossem. Afinal, todos tinham uma VIDA, que não podia ser interrompida. Mas a minha, ah! essa não existia. Fácil assim. Joguem os problemas sobre uma pessoa e sigam seus caminhos. Liguem para saber como seu pai passou o dia, apareçam de vez em quando, façam cena de total desespero quando alguém lhe perguntar algo, mas se mantenham distantes, sejam apenas espectadores, não façam parte do show.
Minha revolta não tinha tamanho. Éramos quatro filhos, mas na verdade a prole era constituída de um só.
Durante muito tempo os julguei, se pudesse os condenaria à prisão perpétua, em masmorras. Mas hoje, depois de muita terapia, aprendi que as pessoas só dão aquilo que podem ou principalmente, aquilo que querem dar. Se há perdão? Não. Até tentei, mas descobri que há coisas que são imperdoáveis e não vou querer a essa altura de minha vida posar de santa. A raiva talvez tenha diminuído, porém a mágoa, a incompreensão, não. Jamais, enquanto eu viver, esquecerei as horas em que passei ao lado de meu pai, proferindo um monólogo onde lhe punha a par do que se passava no mundo, enquanto ele me olhava e deixava claro que nada lhe interessava e a única coisa que ele desejava é que aquela situação chegasse ao fim.
Morte, onde andava você? Por que não vinha fazer uma obra e caridade, o pegasse em seus braços e o levasse?
Talvez ela estivesse ocupada demais, afinal ela não tem mais do que dois braços para carregar milhões de pessoas que a aguardavam.
Ou quem sabe, de acordo com o espiritismo, ao qual eu me apegava em busca de alguma resposta plausível, tivesse uma justificativa. O quê meu pai e eu havíamos feito de tão horroroso em outras encarnações que precisássemos juntos depurar nossos espíritos nessa vida?
Acho que a ficha só caiu mesmo quando o médico mais antigo do Hospital Santa Isabel faleceu. Na capela, onde ele estava sendo velado, uma amiga, também enfermeira, disse-me em tom muito condoído que em breve seria eu a estar velando meu pai.
Até então, o sentimento de filha se sobrepunha à racionalidade da medicina.Nada, nada mais poderia ser feito a não ser esperar a derradeira hora.
Isso se deu mais ou menos em agosto e meu estado era deplorável. Minha chefe, certo dia me chamou e me obrigou a tirar uns dias de férias, mesmo não estando na hora. Pediu que eu viajasse, que saísse de Blumenau, que por algum tempo tentasse me impôr alguns momentos de normalidade.
Fui para casa de uma amiga, em Florianópolis e ali fiquei por duas semanas. Mas aqueles poucos dias nada representavam perto dos meses em que eu estava convivendo com a dor. Acompanhei a morte da lady Di, passava os dias em frente à televisão, acho que era uma forma de me conectar com a realidade. Não adiantava fugir, não havia uma porta mágica que se abrisse pela qual eu pudesse sair.
Voltei decidida a fazer justiça. Entrei em contato com uma Associação, em São Paulo que tratava de erros médicos e para lá fui. Fiquei então sabendo que o tal cirurgião já era responsável por outros casos de insucesso, mas todo o processo teria que correr em São Paulo e como sempre, a única pessoa apta a fazer isso era eu. Mas como? Eu precisava trabalhar, não podia me ausentar e além disso, os custos das constantes viagens não eram poucos e nós já estávamos praticamente falidos. Mas o real motivo de eu não dar prosseguimento ao processo foi o cruel corporativismo entre os médicos. Malditos, malditos médicos que mesmo tendo a certeza do erro cometido, não podiam ferir a "ética".
Sei que eles são homens e portanto, passíveis de errar, mas jamais poderia aceitar a negligência, o descaso,o desrespeito. Foi muito fácil para aquele que levou meu pai à morte, embarcar numa primeira classe e fugir para os Estados Unidos. E nós, para onde iríamos escapar?
Simplesmente não havia rota de fuga..
Nunca me senti tão só, tão impotente, tão inútil.
Eu assistia de camarote à morte de meu pai.
Até então eu isentei, nesses relatos a participação, ou melhor, a não participação da minha família.
Quando comecei a escrever, prometi a mim mesma deixar essa questão de fora e realmente, não vou me estender nela. Mas eu torno a perguntar: onde estavam todos?
Ora, cada um seguindo suas vidas. saindo, se divertindo, fazendo raras visitas, como se estranhos fossem. Afinal, todos tinham uma VIDA, que não podia ser interrompida. Mas a minha, ah! essa não existia. Fácil assim. Joguem os problemas sobre uma pessoa e sigam seus caminhos. Liguem para saber como seu pai passou o dia, apareçam de vez em quando, façam cena de total desespero quando alguém lhe perguntar algo, mas se mantenham distantes, sejam apenas espectadores, não façam parte do show.
Minha revolta não tinha tamanho. Éramos quatro filhos, mas na verdade a prole era constituída de um só.
Durante muito tempo os julguei, se pudesse os condenaria à prisão perpétua, em masmorras. Mas hoje, depois de muita terapia, aprendi que as pessoas só dão aquilo que podem ou principalmente, aquilo que querem dar. Se há perdão? Não. Até tentei, mas descobri que há coisas que são imperdoáveis e não vou querer a essa altura de minha vida posar de santa. A raiva talvez tenha diminuído, porém a mágoa, a incompreensão, não. Jamais, enquanto eu viver, esquecerei as horas em que passei ao lado de meu pai, proferindo um monólogo onde lhe punha a par do que se passava no mundo, enquanto ele me olhava e deixava claro que nada lhe interessava e a única coisa que ele desejava é que aquela situação chegasse ao fim.
Morte, onde andava você? Por que não vinha fazer uma obra e caridade, o pegasse em seus braços e o levasse?
Talvez ela estivesse ocupada demais, afinal ela não tem mais do que dois braços para carregar milhões de pessoas que a aguardavam.
Ou quem sabe, de acordo com o espiritismo, ao qual eu me apegava em busca de alguma resposta plausível, tivesse uma justificativa. O quê meu pai e eu havíamos feito de tão horroroso em outras encarnações que precisássemos juntos depurar nossos espíritos nessa vida?
quarta-feira, 7 de janeiro de 2015
RELATOS PARKINSONIANOS - 15 - LEMBRANÇAS ESPARÇAS
Eu tenho procurado escrever seguindo um ordem cronológica, da forma em que os fatos ocorreram. Porém, de vez em quando aparecem lembranças, que já julgava esquecidas, mas que ledo engano, elas ficaram quietinhas no fundo do baú das memórias, esperando que alguém as trouxesse para cima, pois de alguma maneira fizeram parte da história.
A primeira que me vem à mente é a que se refere a decepção que tivemos com a Cisco, a cachorrinha de meu pai. Enquanto ele levava uma vida "normal", dentro das suas limitações, Cisco era a razão da sua vida. Uma cachorrinha vira-lata, peludinha, arrancada pelas mãos de minha filha de um destino infeliz. Não a queriam, iam matá-la. Chegou em nossa casa e não sabíamos onde era um cachorro e onde eram as pulgas. Foi preciso uma sucessão de banhos até reconhecer que sim, ali vivia uma cachorrinha.. No início ficou no meu apartamento, mas a bichinha, ainda bebê, fazia todas as traquinagens possíveis, enquanto minha filha estava na escola e eu trabalhando.
Minha mãe tinha uma paciência imensa para treinar e educar cachorros e assim, ela mudou de casa.
O amor por meu pai foi imediato e correspondido. Já havia outra companheira, a Gabi, uma poodle branca, mas esta era mais apegada à minha mãe.
Quando meu pai viajou para São Paulo para se submeter à cirurgia, as duas foram para minha casa. Cisco entrou em profunda depressão. Desde o primeiro dia escondeu-se debaixo de minha cama e de lá só saía para fazer suas necessidades, preferencialmente à noite. O resto do dia permanecia quietinha, só se mexia para comer.
Foi um longo tempo até meu pai retornar de São Paulo e estávamos todos ansiosos pelo encontro dos dois. Acreditávamos num momento de pura emoção, para ambos.
Colocamos meu pai numa poltrona (que tenho até hoje e que jamais me desfarei) e levamos a Cisco até ele, crentes que ela pularia em seu colo. Mas sua reação foi o oposto de tudo o que havíamos imaginado. Quando ela o viu, imóvel, tentou sair do quarto. então a colocamos sobre suas pernas, mas negou-se terminantemente a ficar ou a sequer olhá-lo. Disparou porta afora. Não, aquele não era o objeto de seu amor. Era um desconhecido, um farrapo humano que apenas respirava, sem condições de nem lhe fazer uma carinho.
Não sei o que lhe passou pela sua cabecinha. Quem era aquele homem? Com certeza não era o mesmo que todos os dias após o almoço ela se juntava para tirar uma soneca, aninhada em suas pernas. Também penso que foi uma fuga, uma proteção, um escudo de indiferença que ela criara para não sofrer. Foi uma das vezes em que vi meu pai chorar.
Nunca mais, ela por vontade própria tornou a entrar no quarto. Para ela, meu pai já era um cadáver.
Ela não queria ver, podia se dar a esse luxo, enquanto nós, assistíamos dia após dia a vida se esvaindo.
SERIA CÔMICO SE NÃO FOSSE TRISTE
Meu pai era um homem alto e magro. Não uma magreza esquálida, mas um porte elegante, que foi se perdendo a medida em que a doença ia progredindo e mudando sua postura.
Após meses acamado e se alimentando somente através da dieta líquida, era óbvio que se tornasse mais magro. Porém, não deixava de ser pesado, até porque um corpo inerte parece conter mais peso.
Não era fácil lidar com ele. Não sei como os cuidadores o conseguiam. Virá-lo, colocá-lo sentado na poltrona, demandava um grande esforço físico. Eu sozinha não tinha condições, tanto físicas quanto emocionais. Além de não conseguir encarar as escaras, nunca pude lidar muito bem com fezes, mesmo sendo as de meu pai. Não sou e nem nunca fui cheia de "salameleques", porém algumas coisas me causavam um tremendo desconforto. Por exemplo: nunca pude ver uma retirada de unha, uma bicheira e principalmente, fezes. Não me incomodava uma ferida com pus, uma secreção bronco pulmonar, vômito ou sangue. Mas fezes, ah! eram impossíveis para mim. Se tivesse que limpar um paciente evacuado, podia contar, acabava no banheiro colocando até meu estômago para fora.
Mas certo domingo, o cuidador da noite se atrasou e meu pai estava imundo, era preciso uma higiene e uma troca de curativos urgente. Com quem contar, meu Deus? Com minha mãe? Nem pensar, ela jamais pode sequer tratar um simples arranhão tão comum nos joelhos infantis. Portanto, opção descartada. O tempo passava e os lençóis e cobertas já estavam ficando marrons. Eu precisava criar coragem e enfrentar a situação. Tudo bem, eu faria, mas não tinha força física para manusear meu pai, necessitava de alguém para me ajudar. Assim, perdi a vergonha e chamei um vizinho, um professor, querido amigo e ele foi. Sabia que não iria encontrar uma imagem agradável, mas penso que nem de longe imaginava o que viria pela frente.
A ele cabia apenas segurar meu pai em posição lateral, para que eu pudesse limpar e depois executar o curativo. Ele foi guerreiro. Tentou não demonstrar o mal estar e foi aguentando firme, mas comecei a ver que suas mãos tremiam, o suor escorria como uma cachoeira pelo seu rosto que àquela altura estava branco como uma folha de papel. Entrei em desespero, tomei ciência que logo, logo ele iria desmaiar e o que eu faria com ele, como acudi-lo, visto que também era um homem grande?
Tentava limpar meu pai o mais rápido que minhas mãos permitiam, mas quanto mais eu o manuseava, mais ele evacuava e o cheiro tornava o quarto irrespirável.
Percebendo que meu amigo iria despencar, libertei-o da tarefa ingrata, acomodei-o na poltrona. Foi só o tempo dele vomitar e em seguida perder os sentidos.
O peso de seu corpo inerte fazia com que ele fosse escorregando da poltrona e eu já o imaginava no chão, talvez machucado. Cobri meu pai, ainda sujo e chamei minha mãe para amparar meu ajudante, mas ela se recusou, o cheiro também a levou ao banheiro. Pelo menos ela conseguira usar a privada.
Sem ação, agachei-me no chão e chorei, chorei de impotência, da sensação da mais profunda solidão. Eu não tinha ninguém para dividir comigo aquele momento, dependia de estranhos. Não sei quanto tempo se passou até Osmira chegar e com sua determinação colocar uma ordem no caos que havia se instalado. Eu também necessitava urgentemente de um chuveiro.
Meu amigo por fim recobrou os sentidos, tratei de minimizar um pouco a sujeira de suas roupas, pedi todas as desculpas possíveis. Ele me olhava com pena e muito delicadamente me perguntou: "onde estão seus irmãos"? Sim, onde estava Wally????
A primeira que me vem à mente é a que se refere a decepção que tivemos com a Cisco, a cachorrinha de meu pai. Enquanto ele levava uma vida "normal", dentro das suas limitações, Cisco era a razão da sua vida. Uma cachorrinha vira-lata, peludinha, arrancada pelas mãos de minha filha de um destino infeliz. Não a queriam, iam matá-la. Chegou em nossa casa e não sabíamos onde era um cachorro e onde eram as pulgas. Foi preciso uma sucessão de banhos até reconhecer que sim, ali vivia uma cachorrinha.. No início ficou no meu apartamento, mas a bichinha, ainda bebê, fazia todas as traquinagens possíveis, enquanto minha filha estava na escola e eu trabalhando.
Minha mãe tinha uma paciência imensa para treinar e educar cachorros e assim, ela mudou de casa.
O amor por meu pai foi imediato e correspondido. Já havia outra companheira, a Gabi, uma poodle branca, mas esta era mais apegada à minha mãe.
Quando meu pai viajou para São Paulo para se submeter à cirurgia, as duas foram para minha casa. Cisco entrou em profunda depressão. Desde o primeiro dia escondeu-se debaixo de minha cama e de lá só saía para fazer suas necessidades, preferencialmente à noite. O resto do dia permanecia quietinha, só se mexia para comer.
Foi um longo tempo até meu pai retornar de São Paulo e estávamos todos ansiosos pelo encontro dos dois. Acreditávamos num momento de pura emoção, para ambos.
Colocamos meu pai numa poltrona (que tenho até hoje e que jamais me desfarei) e levamos a Cisco até ele, crentes que ela pularia em seu colo. Mas sua reação foi o oposto de tudo o que havíamos imaginado. Quando ela o viu, imóvel, tentou sair do quarto. então a colocamos sobre suas pernas, mas negou-se terminantemente a ficar ou a sequer olhá-lo. Disparou porta afora. Não, aquele não era o objeto de seu amor. Era um desconhecido, um farrapo humano que apenas respirava, sem condições de nem lhe fazer uma carinho.
Não sei o que lhe passou pela sua cabecinha. Quem era aquele homem? Com certeza não era o mesmo que todos os dias após o almoço ela se juntava para tirar uma soneca, aninhada em suas pernas. Também penso que foi uma fuga, uma proteção, um escudo de indiferença que ela criara para não sofrer. Foi uma das vezes em que vi meu pai chorar.
Nunca mais, ela por vontade própria tornou a entrar no quarto. Para ela, meu pai já era um cadáver.
Ela não queria ver, podia se dar a esse luxo, enquanto nós, assistíamos dia após dia a vida se esvaindo.
SERIA CÔMICO SE NÃO FOSSE TRISTE
Meu pai era um homem alto e magro. Não uma magreza esquálida, mas um porte elegante, que foi se perdendo a medida em que a doença ia progredindo e mudando sua postura.
Após meses acamado e se alimentando somente através da dieta líquida, era óbvio que se tornasse mais magro. Porém, não deixava de ser pesado, até porque um corpo inerte parece conter mais peso.
Não era fácil lidar com ele. Não sei como os cuidadores o conseguiam. Virá-lo, colocá-lo sentado na poltrona, demandava um grande esforço físico. Eu sozinha não tinha condições, tanto físicas quanto emocionais. Além de não conseguir encarar as escaras, nunca pude lidar muito bem com fezes, mesmo sendo as de meu pai. Não sou e nem nunca fui cheia de "salameleques", porém algumas coisas me causavam um tremendo desconforto. Por exemplo: nunca pude ver uma retirada de unha, uma bicheira e principalmente, fezes. Não me incomodava uma ferida com pus, uma secreção bronco pulmonar, vômito ou sangue. Mas fezes, ah! eram impossíveis para mim. Se tivesse que limpar um paciente evacuado, podia contar, acabava no banheiro colocando até meu estômago para fora.
Mas certo domingo, o cuidador da noite se atrasou e meu pai estava imundo, era preciso uma higiene e uma troca de curativos urgente. Com quem contar, meu Deus? Com minha mãe? Nem pensar, ela jamais pode sequer tratar um simples arranhão tão comum nos joelhos infantis. Portanto, opção descartada. O tempo passava e os lençóis e cobertas já estavam ficando marrons. Eu precisava criar coragem e enfrentar a situação. Tudo bem, eu faria, mas não tinha força física para manusear meu pai, necessitava de alguém para me ajudar. Assim, perdi a vergonha e chamei um vizinho, um professor, querido amigo e ele foi. Sabia que não iria encontrar uma imagem agradável, mas penso que nem de longe imaginava o que viria pela frente.
A ele cabia apenas segurar meu pai em posição lateral, para que eu pudesse limpar e depois executar o curativo. Ele foi guerreiro. Tentou não demonstrar o mal estar e foi aguentando firme, mas comecei a ver que suas mãos tremiam, o suor escorria como uma cachoeira pelo seu rosto que àquela altura estava branco como uma folha de papel. Entrei em desespero, tomei ciência que logo, logo ele iria desmaiar e o que eu faria com ele, como acudi-lo, visto que também era um homem grande?
Tentava limpar meu pai o mais rápido que minhas mãos permitiam, mas quanto mais eu o manuseava, mais ele evacuava e o cheiro tornava o quarto irrespirável.
Percebendo que meu amigo iria despencar, libertei-o da tarefa ingrata, acomodei-o na poltrona. Foi só o tempo dele vomitar e em seguida perder os sentidos.
O peso de seu corpo inerte fazia com que ele fosse escorregando da poltrona e eu já o imaginava no chão, talvez machucado. Cobri meu pai, ainda sujo e chamei minha mãe para amparar meu ajudante, mas ela se recusou, o cheiro também a levou ao banheiro. Pelo menos ela conseguira usar a privada.
Sem ação, agachei-me no chão e chorei, chorei de impotência, da sensação da mais profunda solidão. Eu não tinha ninguém para dividir comigo aquele momento, dependia de estranhos. Não sei quanto tempo se passou até Osmira chegar e com sua determinação colocar uma ordem no caos que havia se instalado. Eu também necessitava urgentemente de um chuveiro.
Meu amigo por fim recobrou os sentidos, tratei de minimizar um pouco a sujeira de suas roupas, pedi todas as desculpas possíveis. Ele me olhava com pena e muito delicadamente me perguntou: "onde estão seus irmãos"? Sim, onde estava Wally????
RELATOS PARKINSONIANOS - 14 - NÓS TAMBÉM ESTÁVAMOS DOENTES
RELATOS PARKINSONIANOS – 14 – NÓS TAMBÉM ESTÁVAMOS DOENTES
Engana-se quem pensa que um paciente é um ser único, que
somente a ele cabe todas as agruras, todas as dores, ou toda a imobilidade,
como era o caso de meu pai.
Muito embora os médicos insistissem em me dizer que ele
estava fora de qualquer resquício de conexão com a realidade, eu tinha certeza
que não era assim.
Havia momentos em que, mesmo sem falar com palavras, ele o
fazia com os olhos e perdi a conta do quanto ele despejava em mim um pedido de socorro.
Também não era incomum, mudanças na sua expressão facial
quando alguma visita chegava para lhe ver. Ele compreendia, ou quando se
recusava a fazer os exercícios que a fonoaudióloga lhe impunha. Travava os
dentes, numa atitude que demonstrava claramente que não queria falar nada.
Encerrou-se numa mudez, que tenho para mim, era voluntária. Em todos os exames
que lhe foram feitos, nenhum acusou alguma lesão na área da fala. Claro que
quando se está traqueostomizado, o ato de pronunciar algumas palavras torna-se
bem difícil, mas ele podia emitir algum som, mas por mais que tentássemos, a
única forma de comunicação era através dos olhos ou do menear a cabeça. Ele
costumava fazer isso quando era preciso fazer-lhe algum procedimento ou
simplesmente quando parecia não querer ouvir, sobretudo se eram palavras
encorajadoras. Ele sabia, meu pai continuou inteligente e sagaz até seus
últimos momentos. Sabia que seu quadro era irreversível e nada do que lhe fosse
dito mudaria a sua situação.
Após a segunda internação, devido à pneumonia, decidimos,
por várias razões que a partir dali ele não seria mais internado. Tudo o que
lhe acontecesse seria atendido em casa.
Havia também a situação financeira, que se agravava dia a
dia. O plano de saúde já não permitia internações, já havíamos extrapolado os
limites. Nossas últimas despesas com o Hospital foram pagas com louças
destinadas a renovação da copa e da cozinha da instituição.
O dinheiro ia-se embora como uma cachoeira. Minha mãe
conseguiu vender um terreno, o carro, mas era insuficiente. Manter enfermagem
particular era extremamente caro e nós não iríamos abrir mão daquela ajuda, que
em todos os sentidos era fundamental. Aliás, não abrimos mão de nada que
pudesse conferir conforto e bem estar para meu pai.
Amigos e alguns parentes ajudavam com materiais, como
fraldas, por exemplo, mas houve uma época em que precisei fazer, através do
rádio, uma campanha. Necessitávamos de tudo e a Cremer, empresa de materiais
hospitalares providenciou imediatamente uma grande quantidade de produtos que
nos dariam algum respiro por um tempo.
O maior problema era
co relação às escaras. È certo que, depois que ele veio para Blumenau, nunca
mais apresentou nenhuma, isto porque tinha um atendimento esmerado, que incluía
uma higiene rigorosa, mudanças de decúbito, massagens e suportes nas áreas mais
vulneráveis. Porém aquela imensa, que lhe tomava toda a região glútea, essa,
por mais que tentássemos, não cicatrizava.
Era profunda demais e
por ali ele perdia todas as proteínas
que ajudariam a fechá-la. Iniciamos então um tratamento com um produto chamado Perative,
que se constituía num líquido protéico. Lembro que na época, cada latinha
custava por volta de R$ 5.00 e ele tomava através da sonda, três ao dia.
Além dos tratamentos preconizados pela medicina profissional
eu buscava desesperadamente outros, mais alternativos.
Não sei o que me movia, pois sabia que nada reverteria
aquela situação.
Não quero me santificar, não pense você que eu
acreditava ser melhor do que ninguém, mas era em mim que o peso era depositado,
dia a dia.
Emagreci ao ponto de não ter mais roupas que me coubessem.
Mesmo com a ajuda que a enfermagem prestava, toda a responsabilidade do que
deveria ser feito, recaía sobre meus ombros.
Meus dias eram sempre do mesmo jeito: levantava cedo, ia
trabalhar, não sem antes dar as instruções a quem estava de plantão. Meu turno
ia até às !6.00 horas, mais os plantões de doze horas nos fins de semana. Ao
sair do hospital, invariavelmente passava na farmácia e na loja de produtos médico-hospitalares.
Todos os dias faltava alguma coisa. Junto às compras eu ainda carregava o
pacote com os materiais de curativo que haviam sido esterilizados.
Chegando em casa, minha primeira providência era ir ao
quarto do meu pai, saber como havia sido o dia. Então ia para meu apartamento,
tomava banho e passava a preparar os
materiais que deveriam ser levados para o hospital na manhã seguinte.
Geralmente ajudava nos curativos noturnos e não raro tinha
que desobstruir a sonda enteral ou mesmo trocá-la.
Os meses passavam em câmera lenta. Já não tínhamos os nervos
à flor da pele, eles nasciam de nossos poros como ervas daninhas, não havia
como ceifá-los.
A exaustão tomava conta, não somente a física, mas
sobretudo, a emocional, aquela que vem da desesperança, da impotência, da
convivência diária com a morte, companheira constante, que nos acompanhava à
mesa, à cama, ao banho.
Não a víamos, porém tínhamos certeza de sua presença, e por vezes, silenciosamente, suplicávamos
que ela tivesse clemência, mas esta é uma palavra que a morte desconhece.
terça-feira, 6 de janeiro de 2015
RELATOS PARKINSONIANOS - 13 - UM EFEITO DEVASTADOR E SEM VOLTA
Como é, você agora ter em casa uma pessoa totalmente dependente, absolutamente imóvel sobre uma cama hospitalar (sim, o Hospital me emprestou uma), num quarto que se assemelhava a uma mini UTI, com suporte de soro, oxigênio, aspirador de secreções, dezenas de pacotes contendo material específico para curativos, que eu levava todos os dias comigo para serem esterilizados, medicações, sondas, enfim, todo o aparato necessário para manter essa pessoa viva?
Ela respirava, evacuava, recebia alimentação via sonda enteral, que muitas vezes obstruía e que eu precisava recolocar sem pensar no quanto aquilo era incômodo, no quanto fazia meu pai sofrer? E de onde buscava energia para para fazer os imensos curativos, várias vezes ao dia, ou aspirar a traqueostomia, retirar através de uma sonda as secreções bronco pulmonares que impediam uma respiração mais tranquila e eficiente.
É certo, a partir do momento em que meu pai teve alta do Hospital e foi para casa, nós tratamos de contratar uma equipe de enfermagem que permanecesse ao nosso lado vinte e quatro horas por dia e as pessoas que partilharam conosco aquele período eram muito mais do que profissionais, tornaram-se parte do núcleo familiar. Eram eles que nos davam sustentação quando todas as esperanças pareciam ter acabado. Eles nos faziam rir, de certa forma procuravam dar um ritmo normal a a uma circunstância absolutamente anormal.
Cabia a eles, mais do que realizar procedimentos, nos fazer ver que, a despeito de meu pai estar morrendo, a vida continuava para nós.
Osmira, Vitor e Nilva, cada um de seu jeito, eram presenças indispensáveis. Sem eles era como se não tivéssemos mãos, como se não tivéssemos condições de realizar qualquer procedimento. Ficávamos inválidos, desprovidos de ação.
Como em tudo, a rotina também se instala, nasce um novo ritmo nos dias e nada há a fazer senão se acostumar.
Assim, antes das sete horas da manhã eu saía para o trabalho, ainda meio dopada pelos efeitos do Lexotan que havia tomado à noite para conseguir dormir. Levava comigo inúmeros pacotes contendo gazes, pinças, torundas, tudo o que era necessário para ser esterilizado de forma a não levar mais contaminação para as escaras de meu pai.
Enquanto estava fora, as tarefas eram realizadas como se ali, naquele apartamento existisse de fato um hospital. Minha mãe preparava a primeira refeição enteral, uma mistura de vários alimentos, batidos no liquidificador ou mesmo os industrializadas que eram infundidos através da sonda de ia do nariz até o estômago. Ela muito raramente instalava o frasco no suporte, por não saber, mas sobretudo, por não querer ver. Depois, quem estava de plantão iniciava os preparativos do banho e os curativos, porém antes de tudo havia a necessidade de se aspirar a traqueostomia. Sem isso meu pai morreria sufocado. Depois da higiene, não sei como, com que força física, ele era colocado sentado numa poltrona, ou por vezes na cadeira de rodas e levado até a varanda para pegar um pouco de sol.
Em algumas ocasiões, sobretudo nos finais de semana, colocávamos as músicas que ele gostava, principalmente Edith Piaff, cantando "La vie en rose".
Como no quarto havia uma televisão em frente a sua cama, esta ficava quase que permanentemente
ligada, sobretudo nos canais esportivos. Assim ele acompanhou a vitória de Guga em Roland Garros e posso jurar que vi um brilho de felicidade e emoção em seu olhar.
Mas à noite a programação mudava, se Osmira estivesse de plantão. Como ela dormia no mesmo quarto que ele e seu sono era sempre entrecortado para atender as necessidades que apareciam, ela optava por se manter acordada, assistindo filmes pornôs. Não sei se meu pai compreendia bem o que as imagens mostravam, mas ele ficava de olhos arregalados, olhando para a tela.
Ah! Osmira, quantas vezes você nos aliviou, nos fez rir com suas histórias, seu bom humor, suas loucuras hilárias. Daria para escrever um livro só sobre a sua vida.
Na Páscoa, a despeito da nossa rejeição, minha mãe fez o seu famoso bacalhau, aquele que ele havia comprado lá em São Paulo, antes de operar e tinha sido mantido congelado. Minha mãe fez questão, pois bacalhoada era um prato obrigatório em nossa família na Sexta Feira Santa. Meu pai participou do almoço, sentado na cabeceira da mesa, em sua cadeira de rodas, com os olhos fixos na travessa do bacalhau. Não resistimos e desfiamos um micro pedaço do peixe, bem molhado no azeite de oliva, cobrimos a traqueostomia e colocamos em sua boca, porém, talvez pelo tamanho do desejo, ele engoliu muito rapidamente e o alimento não foi para o estômago, mas sim para o pulmão e a consequência foi uma pneumonia por aspiração que o levou de novo para o hospital.
Ali achamos que o fim havia chegado, porém mais uma vez ele demonstrou uma força inigualável e voltou para casa algumas semanas depois. Foi a última vez que o internamos. Todos os tratamentos eram agora feitos em casa: fisioterapia, fonoaudiologia e até os médicos atendiam-no lá.
Lembro de uma vez, já bem perto do final, eu não conseguia mais um acesso venoso e ele precisava ser mantido no soro. Tentei todas as veias possíveis, só consegui uma na ponta do dedo indicador, e foi ali que introduzi o scalp. Óbvio que não durou muito tempo, mas logo solicitei a um médico que viesse fazer uma punção através da subclávia, um acesso que leva um catéter até o coração, muito mais seguro e eficiente.
Não tenho uma ideia a respeito de mim mesma naqueles momentos, só sei que quando necessário, morria a filha e a enfermeira tomava seu lugar, fria e determinada. A filha só retornava quando estava sozinha em seu quarto e podia chorar e se revoltar em paz, ou quando dividia meu sofrimento com minhas amigas.
Naquele período Deus e todos os santos haviam desaparecido de dentro de mim. Cheguei a conclusão que era uma mulher de pouca fé. Tinha um ódio incontido, uma revolta, um sentimento de impotência que me dilacerava. Como, me perguntava, eu podia ter ajudado a salvar tantas pessoas, ao longo da minha vida profissional e nada conseguia para melhorar meu pai?
Chega, por hoje nada mais posso escrever. Tudo, apesar de tantos anos passados, ainda é vivo dentro de mim e ao ver meu sogro, ontem, num leito de UTI, foi mais um passo que me levou ao passado, um passo muito curto e doloroso.
Ela respirava, evacuava, recebia alimentação via sonda enteral, que muitas vezes obstruía e que eu precisava recolocar sem pensar no quanto aquilo era incômodo, no quanto fazia meu pai sofrer? E de onde buscava energia para para fazer os imensos curativos, várias vezes ao dia, ou aspirar a traqueostomia, retirar através de uma sonda as secreções bronco pulmonares que impediam uma respiração mais tranquila e eficiente.
É certo, a partir do momento em que meu pai teve alta do Hospital e foi para casa, nós tratamos de contratar uma equipe de enfermagem que permanecesse ao nosso lado vinte e quatro horas por dia e as pessoas que partilharam conosco aquele período eram muito mais do que profissionais, tornaram-se parte do núcleo familiar. Eram eles que nos davam sustentação quando todas as esperanças pareciam ter acabado. Eles nos faziam rir, de certa forma procuravam dar um ritmo normal a a uma circunstância absolutamente anormal.
Cabia a eles, mais do que realizar procedimentos, nos fazer ver que, a despeito de meu pai estar morrendo, a vida continuava para nós.
Osmira, Vitor e Nilva, cada um de seu jeito, eram presenças indispensáveis. Sem eles era como se não tivéssemos mãos, como se não tivéssemos condições de realizar qualquer procedimento. Ficávamos inválidos, desprovidos de ação.
Como em tudo, a rotina também se instala, nasce um novo ritmo nos dias e nada há a fazer senão se acostumar.
Assim, antes das sete horas da manhã eu saía para o trabalho, ainda meio dopada pelos efeitos do Lexotan que havia tomado à noite para conseguir dormir. Levava comigo inúmeros pacotes contendo gazes, pinças, torundas, tudo o que era necessário para ser esterilizado de forma a não levar mais contaminação para as escaras de meu pai.
Enquanto estava fora, as tarefas eram realizadas como se ali, naquele apartamento existisse de fato um hospital. Minha mãe preparava a primeira refeição enteral, uma mistura de vários alimentos, batidos no liquidificador ou mesmo os industrializadas que eram infundidos através da sonda de ia do nariz até o estômago. Ela muito raramente instalava o frasco no suporte, por não saber, mas sobretudo, por não querer ver. Depois, quem estava de plantão iniciava os preparativos do banho e os curativos, porém antes de tudo havia a necessidade de se aspirar a traqueostomia. Sem isso meu pai morreria sufocado. Depois da higiene, não sei como, com que força física, ele era colocado sentado numa poltrona, ou por vezes na cadeira de rodas e levado até a varanda para pegar um pouco de sol.
Em algumas ocasiões, sobretudo nos finais de semana, colocávamos as músicas que ele gostava, principalmente Edith Piaff, cantando "La vie en rose".
Como no quarto havia uma televisão em frente a sua cama, esta ficava quase que permanentemente
ligada, sobretudo nos canais esportivos. Assim ele acompanhou a vitória de Guga em Roland Garros e posso jurar que vi um brilho de felicidade e emoção em seu olhar.
Mas à noite a programação mudava, se Osmira estivesse de plantão. Como ela dormia no mesmo quarto que ele e seu sono era sempre entrecortado para atender as necessidades que apareciam, ela optava por se manter acordada, assistindo filmes pornôs. Não sei se meu pai compreendia bem o que as imagens mostravam, mas ele ficava de olhos arregalados, olhando para a tela.
Ah! Osmira, quantas vezes você nos aliviou, nos fez rir com suas histórias, seu bom humor, suas loucuras hilárias. Daria para escrever um livro só sobre a sua vida.
Na Páscoa, a despeito da nossa rejeição, minha mãe fez o seu famoso bacalhau, aquele que ele havia comprado lá em São Paulo, antes de operar e tinha sido mantido congelado. Minha mãe fez questão, pois bacalhoada era um prato obrigatório em nossa família na Sexta Feira Santa. Meu pai participou do almoço, sentado na cabeceira da mesa, em sua cadeira de rodas, com os olhos fixos na travessa do bacalhau. Não resistimos e desfiamos um micro pedaço do peixe, bem molhado no azeite de oliva, cobrimos a traqueostomia e colocamos em sua boca, porém, talvez pelo tamanho do desejo, ele engoliu muito rapidamente e o alimento não foi para o estômago, mas sim para o pulmão e a consequência foi uma pneumonia por aspiração que o levou de novo para o hospital.
Ali achamos que o fim havia chegado, porém mais uma vez ele demonstrou uma força inigualável e voltou para casa algumas semanas depois. Foi a última vez que o internamos. Todos os tratamentos eram agora feitos em casa: fisioterapia, fonoaudiologia e até os médicos atendiam-no lá.
Lembro de uma vez, já bem perto do final, eu não conseguia mais um acesso venoso e ele precisava ser mantido no soro. Tentei todas as veias possíveis, só consegui uma na ponta do dedo indicador, e foi ali que introduzi o scalp. Óbvio que não durou muito tempo, mas logo solicitei a um médico que viesse fazer uma punção através da subclávia, um acesso que leva um catéter até o coração, muito mais seguro e eficiente.
Não tenho uma ideia a respeito de mim mesma naqueles momentos, só sei que quando necessário, morria a filha e a enfermeira tomava seu lugar, fria e determinada. A filha só retornava quando estava sozinha em seu quarto e podia chorar e se revoltar em paz, ou quando dividia meu sofrimento com minhas amigas.
Naquele período Deus e todos os santos haviam desaparecido de dentro de mim. Cheguei a conclusão que era uma mulher de pouca fé. Tinha um ódio incontido, uma revolta, um sentimento de impotência que me dilacerava. Como, me perguntava, eu podia ter ajudado a salvar tantas pessoas, ao longo da minha vida profissional e nada conseguia para melhorar meu pai?
Chega, por hoje nada mais posso escrever. Tudo, apesar de tantos anos passados, ainda é vivo dentro de mim e ao ver meu sogro, ontem, num leito de UTI, foi mais um passo que me levou ao passado, um passo muito curto e doloroso.
segunda-feira, 5 de janeiro de 2015
RELATOS PARKINSONIANOS 12 - A VIDA SE IMPÕE
Finalmente o período de festas passou e com ele, a impressão que tenho é que que meus fantasmas também passaram, foram de volta para um outro plano.
Estou pronta para voltar a escrever, muito embora a situação agora esteja muito complicada. Ontem meu sogro, de 92 sofreu um infarto. Está na UTI e será submetido a um cateterismo ainda hoje. Nunca pude imaginar o quanto meu marido ficaria abalado, mas é inevitável, mesmo seu pai tendo tanta idade e a morte seja uma presença constante, nunca nos acostumamos a ela.
Desde que aconteceu aquela fatalidade com meu pai, eu sabia, tinha consciência, uma consciência racional que não haveria volta. Anos de enfermagem me garantiam isso, mas como filha, eu alimentava uma esperança, uma milagre.
Hoje sei que teria feito tudo diferente, que jamais teria lutado tanto pela sua sobrevivência, impondo-lhe tratamentos invasivos, que não posso avaliar no quanto lhe causavam de dor, já que ele não demostrava nenhum sinal. Prefiro, ainda agora, acreditar num não sofrimento físico.
Mas sei que ele compreendia o que estava acontecendo. Tinha momentos de lucidez, embora não falasse, mas respondia a certos estímulos, como abrir e fechar os olhos a partir de algum comando verbal.
Durante esse período festivo pelo qual acabamos de passar, não pude, não consegui expressar nenhuma palavra, nem aqui, nem para as pessoas com as quais convivi. As lembranças afloravam dentro de mim, mas eu as deixava guardadas.
Naquela noite de 31 de dezembro de 1996, ficamos sozinhas, minha mãe e eu com meu que já havia saído da UTI e agora estava em um quarto. Meus irmãos, cada um com suas vidas, entraram em 1997, longe da agonia que nós três passávamos no hospital.
Compramos uma garrafa de champagne francês e a meia noite molhamos seus lábios, tomamos um pouquinho e o resto dividimos com os funcionários do setor. Mas a bebida, por ser brut, era amarga demais, não havia nada de suave ou levemente doce nela e em nossas bocas ela tinha gosto de fel.
Passada a meia noite e o simulacro de uma comemoração, levei minha mãe para casa e voltei para o hospital para a noite mais solitária da minha vida. Vi o dia clarear, não conseguia dormir e várias vezes descia, sentava-me numa mureta, fumava um cigarro , abaixava a cabeça e chorava. Tinha certeza de que não haveria outro reveillon com meu pai vivo.
Ainda não tínhamos contratado um equipe de enfermagem particular, então meus dias eram divididos entre o 4º, onde eu trabalhava com enfermeira da pediatria e o 5º andar, onde meu pai estava internado. A cada momento de folga eu subia as escadas e durante as tardes minha mãe vinha para lhe fazer companhia, mas exceto os momentos em que havia visita, ela dormia no sofá. Eu a recriminava, mas sabia que aquele sono era uma espécie de fuga, de proteção.
Naquele período em que ele ficou internado no Hospital Santa Isabel lutamos bravamente contra uma infecção hospitalar que ela havia contraído ainda em São Paulo. Foi mais um dos presente que o Hospital das Clínicas nos deu. Seu antibiograma demostrava que ele estava resistente a todos os antibióticos disponíveis, então conseguimos uma medicação nova, recém lançada nos Estados Unidos e a importávamos a um custo altíssimo, mas foi a única forma de debelar a infecção. Enquanto isso as escaras na região glúteo-sacral aumentavam consideravelmente, a despeito de todos os cuidados. Como a infeção havia sido controlada, optamos por uma cirurgia reparadora.
Lembro vivamente, eu empurrando a maca até o centro cirúrgico, conversando com ele, não exatamente uma conversa, mas um monólogo, que só era respondido através de seus olhos, agora bem expandidos para fora das órbitas, uma exoftalmia causada pela pressão intracraniana.
Não derramei uma só lágrima até ele ser anestesiado, porém quando saí do Centro Cirúrgico, desabei no corredor, sozinha. Sozinha com estive em todo o tempo em que ele conseguiu viver.
A cirurgia, no entanto não foi um sucesso. Houve uma rejeição e apesar de todos os esforços da equipe médica, tudo se abriu novamente e era possível até tocar na cabeça do fêmur. Já tínhamos então contratado uma enfermeira particular, Osmira, que havia trabalhado comigo quando exerci meu cargo de enfermeira no Asilo São Simeão. Ela foi um alento, desde o primeiro dia.
No início eu ainda conseguia ajudar a fazer os curativos, que se repetiam várias vezes ao dia, visto que apesar de todos os cuidados, a região logo se enchia de fezes, porém em certa altura, mesmo com toda a minha coragem, eu não podia mais acompanhar aqueles procedimentos. Não conseguia ver a extensão das lesões, era-me impossível debridar as partes necrosadas, mesmo que meu pai não esboçasse nenhuma reação dolorosa.
Não sei de onde meu pai arrancava forças para continuar lutando pela vida, nem minha mãe ou eu. o certo é que a despeito de tudo, uma rotina foi se formando. Uma rotina pesada. Eu não parei de trabalhar, meus irmãos pouco participavam, quando muito vinham para uma visita. Afinal, alguém tinha que assumir, e eu era a pessoa mais capacitada e disponível. Enfermeira, solteira, cabia a mim todas as decisões. Sozinha, sempre sozinha.
Em geral os dias eram sempre iguais, mas houve um momento em que todas as esperanças se aguçaram dentro de mim. Estávamos somente nós dois no quarto, eu conversando com minha mãe ao telefone. Quando estava a me despedir dela, pedi que ele desse um tchau e ele falou, com a voz muito fraca, mas ainda assim passível de compreensão, claramente ele falou tchau. Foi a única e última vez que ouvi a voz de meu pai.
Ele ainda permaneceu no Hospital por mais um mês, antes de ter alta e poder ser levado para casa, onde eu montei uma pequena UTI, graças a todo o aparato que o Hospital me deu e contratei mais auxiliares de enfermagem para ajudar, que foram de fundamental importância, não só para ele, mas para nós, porque se voce não sabe, quando alguém adoece com a gravidade que acometeu meu pai, quem fica ao lado, convivendo com a dor dia a dia, também adoece junto e infelizmente não há analgésico que diminua a dor, exceto se encher de anti-depressivo, entregar-se a ele na tentativa, quase sempre vã de continuar a vida com um certo tom de normalidade.
Amigo leitor, você está cansado? Não, por favor, não se canse, compartilhe comigo, não me abandone, porque não está sendo fácil fazer esta viagem ao passado e me isentar de maiores emoções. Preciso saber que não estou só e você precisa saber que a vida é assim e tudo o que nos aconteceu pode neste momento, estar acontecendo com você, ou poderá vir a ocorrer.
Portanto fique aí, me acompanhe nesta jornada que durou pouco mais de um ano. Talvez eu consiga lhe ensinar algumas coisas, talvez eu possa lhe incutir um pouco de força, de coragem, não só num caso como de meu pai, mas em todos cujos seus entes queridos estão sem nenhuma esperança de um final feliz. Não existe receita, apenas uma troca de experiências e uma tentativa de explicar que nunca, jamais em tempo algum o sofrimento deve ser despejado sobre os ombros de uma só pessoa, como se ela não tivesse também uma vida. Todos, todos mesmo, sem exceção devem participar, devem partilhar. É uma luta que deve ser conjunta. Nunca devemos devemos acreditar que um só ser possa de uma hora para outra ser transformado em um solitário Dom Quixote brigando com moinhos imaginários, para no fim encontrar a sua amada Dulcinéia.
Estou pronta para voltar a escrever, muito embora a situação agora esteja muito complicada. Ontem meu sogro, de 92 sofreu um infarto. Está na UTI e será submetido a um cateterismo ainda hoje. Nunca pude imaginar o quanto meu marido ficaria abalado, mas é inevitável, mesmo seu pai tendo tanta idade e a morte seja uma presença constante, nunca nos acostumamos a ela.
Desde que aconteceu aquela fatalidade com meu pai, eu sabia, tinha consciência, uma consciência racional que não haveria volta. Anos de enfermagem me garantiam isso, mas como filha, eu alimentava uma esperança, uma milagre.
Hoje sei que teria feito tudo diferente, que jamais teria lutado tanto pela sua sobrevivência, impondo-lhe tratamentos invasivos, que não posso avaliar no quanto lhe causavam de dor, já que ele não demostrava nenhum sinal. Prefiro, ainda agora, acreditar num não sofrimento físico.
Mas sei que ele compreendia o que estava acontecendo. Tinha momentos de lucidez, embora não falasse, mas respondia a certos estímulos, como abrir e fechar os olhos a partir de algum comando verbal.
Durante esse período festivo pelo qual acabamos de passar, não pude, não consegui expressar nenhuma palavra, nem aqui, nem para as pessoas com as quais convivi. As lembranças afloravam dentro de mim, mas eu as deixava guardadas.
Naquela noite de 31 de dezembro de 1996, ficamos sozinhas, minha mãe e eu com meu que já havia saído da UTI e agora estava em um quarto. Meus irmãos, cada um com suas vidas, entraram em 1997, longe da agonia que nós três passávamos no hospital.
Compramos uma garrafa de champagne francês e a meia noite molhamos seus lábios, tomamos um pouquinho e o resto dividimos com os funcionários do setor. Mas a bebida, por ser brut, era amarga demais, não havia nada de suave ou levemente doce nela e em nossas bocas ela tinha gosto de fel.
Passada a meia noite e o simulacro de uma comemoração, levei minha mãe para casa e voltei para o hospital para a noite mais solitária da minha vida. Vi o dia clarear, não conseguia dormir e várias vezes descia, sentava-me numa mureta, fumava um cigarro , abaixava a cabeça e chorava. Tinha certeza de que não haveria outro reveillon com meu pai vivo.
Ainda não tínhamos contratado um equipe de enfermagem particular, então meus dias eram divididos entre o 4º, onde eu trabalhava com enfermeira da pediatria e o 5º andar, onde meu pai estava internado. A cada momento de folga eu subia as escadas e durante as tardes minha mãe vinha para lhe fazer companhia, mas exceto os momentos em que havia visita, ela dormia no sofá. Eu a recriminava, mas sabia que aquele sono era uma espécie de fuga, de proteção.
Naquele período em que ele ficou internado no Hospital Santa Isabel lutamos bravamente contra uma infecção hospitalar que ela havia contraído ainda em São Paulo. Foi mais um dos presente que o Hospital das Clínicas nos deu. Seu antibiograma demostrava que ele estava resistente a todos os antibióticos disponíveis, então conseguimos uma medicação nova, recém lançada nos Estados Unidos e a importávamos a um custo altíssimo, mas foi a única forma de debelar a infecção. Enquanto isso as escaras na região glúteo-sacral aumentavam consideravelmente, a despeito de todos os cuidados. Como a infeção havia sido controlada, optamos por uma cirurgia reparadora.
Lembro vivamente, eu empurrando a maca até o centro cirúrgico, conversando com ele, não exatamente uma conversa, mas um monólogo, que só era respondido através de seus olhos, agora bem expandidos para fora das órbitas, uma exoftalmia causada pela pressão intracraniana.
Não derramei uma só lágrima até ele ser anestesiado, porém quando saí do Centro Cirúrgico, desabei no corredor, sozinha. Sozinha com estive em todo o tempo em que ele conseguiu viver.
A cirurgia, no entanto não foi um sucesso. Houve uma rejeição e apesar de todos os esforços da equipe médica, tudo se abriu novamente e era possível até tocar na cabeça do fêmur. Já tínhamos então contratado uma enfermeira particular, Osmira, que havia trabalhado comigo quando exerci meu cargo de enfermeira no Asilo São Simeão. Ela foi um alento, desde o primeiro dia.
No início eu ainda conseguia ajudar a fazer os curativos, que se repetiam várias vezes ao dia, visto que apesar de todos os cuidados, a região logo se enchia de fezes, porém em certa altura, mesmo com toda a minha coragem, eu não podia mais acompanhar aqueles procedimentos. Não conseguia ver a extensão das lesões, era-me impossível debridar as partes necrosadas, mesmo que meu pai não esboçasse nenhuma reação dolorosa.
Não sei de onde meu pai arrancava forças para continuar lutando pela vida, nem minha mãe ou eu. o certo é que a despeito de tudo, uma rotina foi se formando. Uma rotina pesada. Eu não parei de trabalhar, meus irmãos pouco participavam, quando muito vinham para uma visita. Afinal, alguém tinha que assumir, e eu era a pessoa mais capacitada e disponível. Enfermeira, solteira, cabia a mim todas as decisões. Sozinha, sempre sozinha.
Em geral os dias eram sempre iguais, mas houve um momento em que todas as esperanças se aguçaram dentro de mim. Estávamos somente nós dois no quarto, eu conversando com minha mãe ao telefone. Quando estava a me despedir dela, pedi que ele desse um tchau e ele falou, com a voz muito fraca, mas ainda assim passível de compreensão, claramente ele falou tchau. Foi a única e última vez que ouvi a voz de meu pai.
Ele ainda permaneceu no Hospital por mais um mês, antes de ter alta e poder ser levado para casa, onde eu montei uma pequena UTI, graças a todo o aparato que o Hospital me deu e contratei mais auxiliares de enfermagem para ajudar, que foram de fundamental importância, não só para ele, mas para nós, porque se voce não sabe, quando alguém adoece com a gravidade que acometeu meu pai, quem fica ao lado, convivendo com a dor dia a dia, também adoece junto e infelizmente não há analgésico que diminua a dor, exceto se encher de anti-depressivo, entregar-se a ele na tentativa, quase sempre vã de continuar a vida com um certo tom de normalidade.
Amigo leitor, você está cansado? Não, por favor, não se canse, compartilhe comigo, não me abandone, porque não está sendo fácil fazer esta viagem ao passado e me isentar de maiores emoções. Preciso saber que não estou só e você precisa saber que a vida é assim e tudo o que nos aconteceu pode neste momento, estar acontecendo com você, ou poderá vir a ocorrer.
Portanto fique aí, me acompanhe nesta jornada que durou pouco mais de um ano. Talvez eu consiga lhe ensinar algumas coisas, talvez eu possa lhe incutir um pouco de força, de coragem, não só num caso como de meu pai, mas em todos cujos seus entes queridos estão sem nenhuma esperança de um final feliz. Não existe receita, apenas uma troca de experiências e uma tentativa de explicar que nunca, jamais em tempo algum o sofrimento deve ser despejado sobre os ombros de uma só pessoa, como se ela não tivesse também uma vida. Todos, todos mesmo, sem exceção devem participar, devem partilhar. É uma luta que deve ser conjunta. Nunca devemos devemos acreditar que um só ser possa de uma hora para outra ser transformado em um solitário Dom Quixote brigando com moinhos imaginários, para no fim encontrar a sua amada Dulcinéia.
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