Quando alguém da família, adoece desde um simples resfriado
que a põe de molho com o nariz escorrendo por uma semana, até uma patologia
grave e sobretudo, sem possibilidade de cura, esse doente deveria pertencer a
todos os membros familiares.
Digo “deveria”, porque na maioria dos casos, não é isto que
acontece, exceto se você tem a felicidade de pertencer a uma família unida por laços muito fortes de amor, de
compreensão, de doação, onde todos, de alguma forma, contribuem para aliviar a
carga.
Hoje, acredito, esta postura me parece cada vez mais rara.
Posso enumerar milhões de causas, como trabalho, medo de encarar o doente,
indiferença, a existência de alguém que possa cumprir a difícil tarefa, mas
penso, sinceramente, que isso ocorre porque e principalmente o fio que une esta
família é muito fino.
Quando nasce uma criança, é óbvio que toda a rotina da casa
passa a girar em torno dela. Horários para a alimentação, para a higiene, o
banho de sol, a dificuldade em lidar com as cólicas, o cuidado para que o bebê
arrote após a amamentação.
Muito embora o nascimento seja quase sempre um motivo de
alegria, não se pode esquecer que junto com ele vem uma série de temores, um
cansaço, uma impossibilidade de uma noite de sono, um choro que não se sabe
identificar a causa.
Muitos pais, atualmente, dividem esses percalços com a mãe,
ou há uma avó que se presta a ajudar ou ainda, se houver condições financeiras
adequadas existe a possibilidade de se contratar uma babá, ou uma enfermeira.
Com todo esse aparato, no entanto, nem tudo são flores,
mas um bebê é um ser peso pena. É fácil
você manuseá-lo, colocar no colo,
vira-lo de barriguinha para baixo para massagear e aliviar as cólicas,
cantar suaves canções para fazê-lo dormir.
Mas o quê fazer com um bebê de aproximadamente 1.80m. que
mesmo magro, ainda assim, é pesado? O quê fazer quando não se sabe o que ele
sente, pois não há qualquer sinal de comunicação. Como trocar as fraldas, sem
ter que refazer os curativos, pois suas fezes não são sólidas, mas sim pastosas
ou líquidas e se espalham com um rio caudaloso, invadindo até os lençóis. Tudo
isso várias vezes ao dia, inclusive de madrugada?
E muitas vezes, passa-se a noite em claro, pois a sonda que
o alimenta obstruiu e há que se trocá-la, ele está se afogando nas secreções
que se acumulam na traqueotomia e há que
se aspirar, causando dor e desconforto. É preciso também controlar a
alimentação, sua dieta é líquida, não se pode deixá-lo longos períodos de
estômago vazio, controlar o gotejamento do soro, perceber sua respiração e
colocar o santo oxigênio que o manterá vivo. E ainda, mudá-lo de posição a cada
duas horas, para que não haja mais escaras, colocar travesseiros e almofadas
entre suas pernas e tornozelos. Só o fato de trocá-lo de posição na cama já
exige uma força física monumental. Lembre-se, ele não é um bebê, mas um homem.
E de manhã recomeçar tudo: banho, barba, cortar as unhas,
trocar a roupa de cama, levá-lo para ficar um pouco sentado na poltrona, massagear
seus membros para facilitar a circulação. Mantê-lo limpo e cheiroso, com a
roupa de cama e seu pijama sempre limpos e retornar a todos os cuidados já
citados acima.
Minha mãe nunca foi uma pessoa dotada de sangue frio com
relação à visão de uma ferida, por mais simples que ela fosse. Também não
suportava nem pensar em trocar suas fraldas, acho que vomitaria em cima dele.
Posso culpá-la? Não. Era da sua natureza. Assim, quando ele
já estava com todos os cuidados feitos, então ela entrava no quarto e fazia
sempre as mesmas perguntas, como se ele pudesse respondê-las: “oi pai, como
passou a noite? Dormiu bem?” Fazei um carinho no rosto e voltava para suas
atividades. Em algumas raras ocasiões, quando por ventura ficava sozinha com
ele, conseguia a custa de muito sacrifício infundir a alimentação através da
sonda. Simplesmente ela não tinha condições emocionais de atendê-lo.
Pouquíssimas vezes a vi chorando, ela criara para si uma couraça, uma proteção
necessária e hoje posso compreender imprescindível para conseguir sobreviver.
Mesmo para mim, a convivência era difícil. Eu agora estava
do outro lado, eu era a “família”, aquela família que nós, muitas vezes no
ofício do dia a dia, não levamos muito em consideração.
Durante todo o tempo em que meu pai esteve vivo, eu
precisava me dividir em muitas: era a enfermeira que tinha que trabalhar no
Hospital, e que por mais que todos lá entendessem a minha situação, eu não podia
deixar de cumprir o meu papel de funcionária, continuava a duras penas manter certa
frieza carinhosa no trato com ele, quando chegava em casa, afinal não podia
mostrar a ele o desespero que me consumia, então chegava a hora de me afastar,
tomar um banho e ali sim, deixar que lágrimas,
revolta e dor se misturassem com a água do chuveiro.
Sim, é verdade, devo tudo aos cuidadores. Sem eles não
teríamos agüentado um dia sequer. Mas onde estavam meus irmãos? Eu precisava
das mãos deles para me manter em pé, para me levantar a cada vez que achava que
não ia conseguir. Minha mãe precisava deles e sobretudo, meu pai.
Infelizmente eles raramente estavam por perto. Eu não
conseguia conceber o afastamento e provavelmente, nunca conseguirei.
Outro dia perguntei a um de meus irmãos, quantas vezes ele
havia visto nosso pai? Ele me respondeu de pronto: “ poucas, umas cinco ou seis
vezes”. EM MAIS DE UM ANO!!!!
Afinal ele tinha uma família, mulher filhos, trabalho (não,
ele não era empregado, tinha seu próprio negócio). O outro praticamente recém
casado aparecia vez em quando e nos
dizia que sempre que precisássemos dele, era só chamar. Ora, isso não precisava
ser dito, não havia necessidade de um chamamento, havia sim a necessidade da
presença.
A outra morava no Rio de Janeiro, é verdade, bem mais longe
e ainda assim veio algumas vezes, mas nesse período, em que ela poderia ter
tirado uma licença, com era seu costume, tirou foi uns dias, junto com seu
então marido para viajar para o Nordeste, “para espairecer”.
Agora, depois de muita terapia, posso chegar de novo àquela
velha conclusão: cada um só dá o que pode e quer.
Mas isso não me levará ao perdão. Nunca, jamais, em tempo
algum eu esquecerei o abandono, o egoísmo.
E digo isso sem uma nota de culpa. Podem me julgar, podem me
condenar, há muito deixei de me preocupar com o que pensam de mim.
E não adianta a negação, não adianta dizer que eu quero me
fazer de “vitima”. Muita, muita gente mesmo, acompanhou e sabe o que se
passava.
Queria ter a benevolência, de fato queria, acho que se
tirasse essa mágoa de mim, eu poderia me sentir melhor. Mas não quero e nem
posso.
Sou humana e não escondo de ninguém os meus defeitos e um
deles é o fato de não conseguir perdoar. Não sou Cristo para dar a outra face.
Meu pai tinha quatro filhos, mas só eu fiquei, do começo ao
fim. Ele pertencia a toda a família, mas neste caso a família se constituía de
minha mãe, dos cuidadores, dos amigos
que não me abandonaram e eu.
Torno a perguntar: ONDE ESTAVA WALLY???
Nenhum comentário:
Postar um comentário