Ah! o tempo, esse senhor implacável, misterioso, que se esconde atrás dos ponteiros de um relógio, o qual não podemos pegar, não podemos fazê-lo parar, retroceder, adiantar. Sim, ele existe e sua presença é sentida pelas marcas que se cravam em nossa pele e em nossa alma.
Dizer que o tempo é o melhor remédio, que a tudo cura, é uma deslavada mentira. Você pode apagar as rugas de seu corpo com plásticas, botox, silicone, malhação, dietas miraculosas que retardam o estrago. Para o espírito, você pode criar uma caixa, enfiá-lo lá dentro e o deixar esquecido, mas às vezes, até sem querer, a tampa da caixa se abre e ele escapole e traz consigo tudo aquilo que você não quer lembrar. Não, não há como negar sua existência. Quanto mais eu escrevo, mais o passado se torna presente, mais o tempo retorna e vou recordando tudo o que vivi com a mesma intensidade de quando tudo aconteceu. Nada me escapa. As palavras saem das pontas dos dedos. Tudo ainda é vivo e dói. Todos os processos que usei para criar um esquecimento se desfazem.
Durante todo o ano que passou, tive dois momentos de afastamento; quando fui obrigada a tirar férias e o dia do meu aniversário. Nesta data, fiz de conta que era um dia normal.Peguei minha mãe, minha filha e saímos para um passeio fora da cidade. Passeamos por São Francisco do Sul, por Joinville e quem nos visse não diria que em casa tínhamos deixado um pai cujo tempo estava levando. Éramos a visão perfeita de três mulheres de gerações diferentes, fazendo turismo, tirando fotos com sorrisos congelados. Eu comemorava quarenta anos. Comemorava?
Foi como matar um dia de aula, escondidas, fizemos gazeta. Por algumas horas nos permitimos esquecer, viver, simplesmente.
Dezembro já estava chegando e com ele a piora inexorável de meu pai.
Já tínhamos decidido que não haveria mais internações. Sua partida se daria em casa, no seu quarto,de onde ele podia ver a bandeira do Corínthians, poderia sentir os aromas que vinham da cozinha, os barulhos comuns da movimentação da casa, nossas vozes, as músicas que ele gostava
Ele não iria se despedir da vida num ambiente frio e hostil de uma UTI, porque seria para lá que ele iria. Seu estado não permitiria outra opção.
Não sou absolutamente contra a UTI, muito pelo contrário, mas tenho o bom senso de saber que investir pesadamente num paciente cuja morte já há muito foi decretada, seria uma completa falta de bom senso. Lá ele seria submetido a vários procedimentos invasivos, seria entubado, ligado ao respirador e assim ficaria, cheio de eletrodos, sondas, submetido à hemodiálise e conectado a um monitor que em alguma momento apitaria, sinalizando através de uma linha reta que não havia mais sinais vitais. Ele estaria morto e muito provavelmente, não haveria uma mão segurando a sua para para lhe dar adeus.
Dia a dia ele foi piorando, foi ficando mais edemaciado, (inchado) por falta de proteínas, a pele começou a se desprender do corpo, ficando fina como um papel de seda. Sua respiração era difícil, agora estava permanentemente ligado ao oxigênio e um edema agudo dos pulmões enchia-lhe os órgãos de líquido,enquanto sua função renal simplesmente sumia.
Muitas vezes, nesse período crítico eu me questionava se minha atitude estava sendo correta, mas eram momentos curtos; a compaixão me obrigava a deixá-lo ali. Uma UTI só faria prolongar um inútil e solitário sofrimento que se acabaria num telefonema avisando que ele fora a óbito.
Ele iria sim, não tínhamos qualquer dúvida, mas ao nosso lado. Pelo menos ao lado de quem esteve sempre presente. E foi assim que se deu.
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