A partir da morte do meu pai, o pouco que havia de uma família desintegrou-se num mar de desavenças, mágoas, rancores. Cada um, de seu jeito, tentava reformular uma estrutura que não mais existia.Não que ele fosse o pilar sustentador de tudo, mas o sofrimento pelo qual ele havia passado e nós também, ao invés de nos unir, acabou por nos deixar mais afastados, até chegar ao ponto da separação completa.
Não posso negar que havia um esforço para voltar à normalidade, mas como nunca fomos um núcleo familiar muito normal, esse esforço foi absolutamente vão.
Mas estes escritos não têm por função contar a respeito da minha vida familiar mais do que já foi feito. O propósito é outro, desde o início. Quando decidi relatar o calvário pelo qual passamos, não tinha e não tenho ainda a intenção de remexer em outras dores que não fossem as causadas pela doença.
Hoje, só para constar, com exceção de um tio paterno, não existe mais ninguém. Todos se foram, só ficaram os filhos e netos e cada um leva uma vida completamente separada uns dos outros, por motivos que só a nós pertencem.
Por caminhos tortuosos, por mais incrível que possa parecer, todos estão certos e todos estão errados.
Loucura ? É bem possível, mas cada um de nós, seguiu seu caminho e não há mais motivos para querer reatar laços, simplesmente porque a corda foi rompida, não há como remendá-la.
A razão de escrever se deu a partir da leitura do livro "Quem, eu?" de um jovem, Fernando Aguzzoli. Comprei o livro como sempre faço ao chegar em Canela, no Rio Grande do Sul. Já virou uma instituição, chegar à cidade almoçar no Empório Canela ( recomendo muitíssimo) e depois adquirir uns livros na livraria que tem no próprio restaurante. Sempre tive o costume de ler muito, hábito dos bons que nossa família nos inculcou. Esse ano, porém, nenhum título me chamava a atenção. Estou numa fase que já não me atrai romances, prefiro biografias, histórias reais, costumes. Já estava por desistir, quando no meio de uma pilha dei de cara com o exemplar. Era o último. Tinha lido várias críticas a respeito da história de um garoto de 23 anos que abandona tudo para cuidar de uma avó com Alzheimer. Confesso que pensei em encontrar naquelas páginas um conjunto de pieguices que me faria largar tudo antes de terminar o primeiro capítulo. Quanto engano. Não se
tratava somente de uma história de amor e doação, era antes de tudo a tentativa (bem sucedida) de demonstrar como conviver com um paciente portador desse mal. Era sobretudo ensinar com maturidade como enfrentar o sofrimento, mostrar que ele pode ser um fator de agregação e dotar o que resta de uma vida que já não se encontra na realidade com um certo toque de humor.
A família não sofreu? Sim, muito. Nunca, em circunstância nenhuma é fácil encarar a finitude, por mais real e única que ela seja. Alguém pode me provar o contrário? Alguém já ficou para semente?
Bom, mas a paciente tinha Alzheimer e não Parkinson e mesmo sendo ambas, doenças degenerativas do cérebro, os sintomas são diferentes. Bom, no entanto, as duas são devastadoras, cada uma a seu modo.
Uma leva o paciente para longe da realidade e ela pelo menos no início, tem uma leve consciência de um esquecimento, de umas confusões que vem fazendo no seu dia a dia, até que não lhe sobre mais nem um pingo de noção do que é certo ou errado, do que é real ou não. É o "alemão", como diz o jargão médico. Já a outra, não leva ao esquecimento, mas sim, à incapacidade física. a impossibilidade de uma simples ato como pentear os cabelos ou abotoar uma blusa.
Quer saber qual eu prefiro ? A primeira. Se é para perder minha autonomia, opto por não saber o que estou fazendo. A consciência de que estou perdendo o domínio sobre as minhas funções corporais é muito mais destrutiva. O Parkinson não nos dá o alento de pelo menos esquecer que a cada dia que passa nos tornamos um pouco mais dependentes, um pouco mais incapazes. Em ambas nos tornamos bebês, mas se em uma não sabemos o que fazer com uma mamadeira, a outra nos impossibilita de pegá-la, apesar de saber para que serve.
Voltei da viagem decidida a escrever. Não um manual de instruções, mas um compartilhamento, esclarecimentos, tanto para o paciente, quanto para a família. Sim, porque a essa altura, já tem mais de um ano que sou PARKINSONIANA. Foi a minha herança, uma triste e irreversível herança que me foi deixada em testamento e o qual não posso contestar ou anular.
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