terça-feira, 6 de janeiro de 2015

RELATOS PARKINSONIANOS - 13 - UM EFEITO DEVASTADOR E SEM VOLTA

Como é, você agora ter em casa uma pessoa totalmente dependente, absolutamente imóvel sobre uma cama hospitalar (sim, o Hospital me emprestou uma), num quarto que se assemelhava a uma mini UTI, com suporte de soro, oxigênio, aspirador de secreções, dezenas de pacotes contendo material específico para curativos, que eu levava todos os dias comigo para serem esterilizados, medicações, sondas, enfim, todo o aparato necessário para manter essa pessoa viva?
Ela respirava, evacuava, recebia alimentação via sonda enteral, que muitas vezes obstruía e que eu precisava recolocar sem pensar no quanto aquilo era incômodo, no quanto fazia meu pai sofrer? E de onde buscava energia para para fazer os imensos curativos, várias vezes ao dia, ou aspirar a traqueostomia, retirar através de uma sonda as secreções bronco pulmonares que impediam uma respiração mais tranquila e eficiente.
É certo, a partir do momento em que meu pai teve alta do Hospital e foi para casa, nós tratamos de contratar uma equipe de enfermagem que permanecesse ao nosso lado vinte e quatro horas por dia e as pessoas que partilharam conosco aquele período eram muito mais do que profissionais, tornaram-se parte do núcleo familiar. Eram eles que nos davam sustentação quando todas as esperanças pareciam ter acabado. Eles nos faziam rir, de certa forma procuravam dar um ritmo normal a a uma circunstância absolutamente anormal.
Cabia a eles, mais do que realizar procedimentos, nos fazer ver que, a despeito de meu pai estar morrendo, a vida continuava para nós.
Osmira, Vitor e Nilva, cada um de seu jeito, eram presenças indispensáveis. Sem eles era como se não tivéssemos mãos, como se não tivéssemos condições de realizar qualquer procedimento. Ficávamos inválidos, desprovidos de ação.
Como em tudo, a rotina também se instala, nasce um novo ritmo nos dias e nada há a fazer senão se acostumar.
Assim, antes das sete horas da manhã eu saía para o trabalho, ainda meio dopada pelos efeitos do Lexotan que havia tomado à noite para conseguir dormir. Levava comigo inúmeros pacotes contendo gazes, pinças, torundas, tudo o que era necessário para ser esterilizado de forma a não levar mais contaminação para as escaras de meu pai.
Enquanto estava fora, as tarefas eram realizadas como se ali, naquele apartamento existisse de fato um hospital. Minha mãe preparava a primeira refeição enteral, uma mistura de vários alimentos, batidos no liquidificador ou mesmo os industrializadas que eram infundidos através da sonda de ia do nariz até o estômago. Ela muito raramente instalava o frasco no suporte, por não saber, mas sobretudo, por não querer ver. Depois, quem estava de plantão iniciava os preparativos do banho e os curativos, porém antes de tudo havia a necessidade de se aspirar a traqueostomia. Sem isso meu pai morreria sufocado. Depois da higiene, não sei como, com que força física, ele era colocado sentado numa poltrona, ou por vezes na cadeira de rodas e levado até a varanda para pegar um pouco de sol.
Em algumas ocasiões, sobretudo nos finais de semana, colocávamos as músicas que ele gostava, principalmente Edith Piaff, cantando "La vie en rose".
Como no quarto havia uma televisão em frente a sua cama, esta ficava quase que permanentemente
 ligada, sobretudo nos canais esportivos. Assim ele acompanhou a vitória de Guga em Roland Garros e posso jurar que vi um brilho de felicidade e emoção em seu olhar.
Mas à noite a programação mudava, se Osmira estivesse de plantão. Como ela dormia no mesmo quarto que ele e seu sono era sempre entrecortado para atender as necessidades que apareciam, ela optava por se manter acordada, assistindo filmes pornôs. Não sei se meu pai compreendia bem o que as imagens mostravam, mas ele ficava de olhos arregalados, olhando para a tela.
Ah! Osmira, quantas vezes você nos aliviou, nos fez rir com suas histórias, seu bom humor, suas loucuras hilárias. Daria para escrever um livro só sobre a sua vida.
Na Páscoa, a despeito da nossa rejeição, minha mãe fez o seu famoso bacalhau, aquele que ele havia comprado lá em São Paulo, antes de operar e tinha sido mantido congelado. Minha mãe fez questão, pois bacalhoada era um prato obrigatório em nossa família na Sexta Feira Santa. Meu pai participou do almoço, sentado na cabeceira da mesa, em sua cadeira de rodas, com os olhos fixos na travessa do bacalhau. Não resistimos e desfiamos um micro pedaço do peixe, bem molhado no azeite de oliva, cobrimos a traqueostomia e colocamos em sua boca, porém, talvez pelo tamanho do desejo, ele engoliu muito rapidamente e o alimento não foi para o estômago, mas sim para o pulmão e a consequência foi uma pneumonia por aspiração que o levou de novo para o hospital.
Ali achamos que o fim havia chegado, porém mais uma vez ele demonstrou uma força inigualável e voltou para casa algumas semanas depois. Foi a última vez que o internamos. Todos os tratamentos eram agora feitos em casa: fisioterapia, fonoaudiologia e até os médicos atendiam-no lá.
Lembro de uma vez, já bem perto do final, eu não conseguia mais um acesso venoso e ele precisava ser mantido no soro. Tentei todas as veias possíveis, só consegui uma na ponta do dedo indicador, e foi ali que introduzi o scalp. Óbvio que não durou muito tempo, mas logo solicitei a um médico que viesse fazer uma punção através da subclávia, um acesso que leva um catéter até o coração, muito mais seguro e eficiente.
Não tenho uma ideia a respeito de mim mesma naqueles momentos, só sei que quando necessário, morria a filha e a enfermeira tomava seu lugar, fria e determinada. A filha só retornava quando estava sozinha em seu quarto e podia chorar e se revoltar em paz, ou quando dividia meu sofrimento com minhas amigas.
Naquele período Deus e todos os santos haviam desaparecido de dentro de mim. Cheguei a conclusão que era uma mulher de pouca fé. Tinha um ódio incontido, uma revolta, um sentimento de impotência que me dilacerava. Como, me perguntava, eu podia ter ajudado a salvar tantas pessoas, ao longo da minha vida profissional e nada conseguia para melhorar meu pai?
Chega, por hoje nada mais posso escrever. Tudo, apesar de tantos anos passados, ainda é vivo dentro de mim e ao ver meu sogro, ontem, num leito de UTI, foi mais um passo que me levou ao passado, um passo muito curto e doloroso.
  

Nenhum comentário:

Postar um comentário