quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

RELATOS PARKINSONIANOS - 15 - LEMBRANÇAS ESPARÇAS

Eu tenho procurado escrever seguindo um ordem cronológica, da forma em que os fatos ocorreram. Porém, de vez em quando aparecem lembranças, que já julgava esquecidas, mas que ledo engano, elas ficaram quietinhas no fundo do baú das memórias, esperando que alguém as trouxesse para cima, pois de alguma maneira fizeram parte da história.
A primeira que me vem  à mente é a que se refere a decepção que tivemos com a Cisco, a cachorrinha de meu pai. Enquanto ele levava uma vida "normal", dentro das suas limitações, Cisco era a razão da sua vida. Uma cachorrinha vira-lata, peludinha, arrancada pelas mãos de minha filha de um destino infeliz. Não a queriam, iam matá-la. Chegou em nossa casa e não sabíamos onde era um cachorro e onde eram as pulgas. Foi preciso uma sucessão de banhos até reconhecer que sim, ali vivia uma cachorrinha.. No início ficou no meu apartamento, mas a bichinha, ainda bebê, fazia todas as traquinagens possíveis, enquanto minha filha estava na escola e eu trabalhando.
Minha mãe tinha uma paciência imensa para treinar e educar cachorros e assim, ela mudou de casa.
O amor por meu pai foi imediato e correspondido. Já havia outra companheira, a Gabi, uma poodle branca, mas esta era mais apegada à minha mãe.
Quando meu pai viajou para São Paulo para se submeter à cirurgia, as duas foram para minha casa. Cisco entrou em profunda depressão. Desde o primeiro dia escondeu-se debaixo de minha cama e de lá só saía para fazer suas necessidades, preferencialmente à noite. O resto do dia permanecia quietinha, só se mexia para comer.
Foi um longo tempo até meu pai retornar de São Paulo e estávamos todos ansiosos pelo encontro dos dois. Acreditávamos num momento de pura emoção, para ambos.
Colocamos meu pai numa poltrona (que tenho até hoje e que jamais me desfarei) e levamos a Cisco até ele, crentes que ela pularia em seu colo. Mas sua reação foi o oposto de tudo o que havíamos imaginado. Quando ela o viu, imóvel, tentou sair do quarto. então a colocamos sobre suas pernas, mas negou-se terminantemente a ficar ou a sequer olhá-lo. Disparou porta afora. Não, aquele não era o objeto de seu amor. Era um desconhecido, um farrapo humano que apenas respirava, sem condições de nem lhe fazer uma carinho.
Não sei o que lhe passou pela sua cabecinha. Quem era aquele homem? Com  certeza não era o mesmo que todos os dias após o almoço ela se juntava para tirar uma soneca, aninhada em suas pernas. Também penso  que foi uma fuga, uma proteção, um escudo de indiferença que ela criara para não sofrer. Foi uma das vezes em que vi meu pai chorar.
Nunca mais, ela por vontade própria tornou a entrar no quarto. Para ela, meu pai já era um cadáver.
Ela não queria ver, podia se dar a esse luxo, enquanto nós, assistíamos dia após dia a vida se esvaindo.

SERIA CÔMICO SE NÃO FOSSE TRISTE
Meu pai era um homem alto e magro. Não uma magreza esquálida, mas um porte elegante, que foi se perdendo a medida em que a doença ia progredindo e mudando sua postura.
Após meses acamado e se alimentando somente através da dieta líquida, era óbvio que se tornasse mais magro. Porém, não deixava de ser pesado, até porque um corpo inerte parece conter mais peso.
Não era fácil lidar com ele. Não sei como os cuidadores o conseguiam. Virá-lo, colocá-lo sentado na poltrona, demandava um grande esforço físico. Eu sozinha não tinha condições, tanto físicas quanto emocionais. Além de não conseguir encarar as escaras, nunca pude lidar muito bem com fezes, mesmo sendo as de meu pai. Não sou e nem nunca fui cheia de "salameleques", porém algumas coisas me causavam um tremendo desconforto. Por exemplo: nunca pude ver uma retirada de unha, uma bicheira e principalmente, fezes. Não me incomodava uma ferida com pus, uma secreção bronco pulmonar, vômito ou sangue. Mas fezes, ah! eram impossíveis para mim. Se tivesse que limpar um paciente evacuado, podia contar, acabava no banheiro colocando até meu estômago para fora.
Mas certo domingo, o cuidador da noite se atrasou e meu pai estava imundo, era preciso uma higiene e uma troca de curativos urgente. Com quem contar, meu Deus? Com minha mãe? Nem pensar, ela jamais pode sequer tratar um simples arranhão tão comum nos joelhos infantis. Portanto, opção descartada. O tempo passava e os lençóis e cobertas já estavam ficando marrons. Eu precisava criar coragem e enfrentar a situação. Tudo bem, eu faria, mas não tinha força física para manusear meu pai, necessitava de alguém para me ajudar. Assim, perdi a vergonha e chamei um vizinho, um professor, querido amigo e ele foi. Sabia que não iria encontrar uma imagem agradável, mas penso que nem de longe imaginava o que viria pela frente.
A ele cabia apenas segurar meu pai em posição lateral, para que eu pudesse limpar e depois executar o curativo. Ele foi guerreiro. Tentou não demonstrar o mal estar e foi aguentando firme, mas comecei a ver que suas mãos tremiam, o suor escorria como uma cachoeira pelo seu rosto que àquela altura estava branco como uma folha de papel. Entrei em desespero, tomei ciência que logo, logo ele iria desmaiar e o que eu faria com ele, como acudi-lo, visto que também era um homem grande?
Tentava limpar meu pai o mais rápido que minhas mãos permitiam, mas quanto mais eu o manuseava, mais ele evacuava e o cheiro tornava o quarto irrespirável.
Percebendo que meu amigo iria despencar, libertei-o da tarefa ingrata, acomodei-o na poltrona. Foi só o tempo dele vomitar e em seguida perder os sentidos.
O peso de seu corpo inerte fazia com que ele fosse escorregando da poltrona e eu já o imaginava no chão, talvez machucado. Cobri meu pai, ainda sujo e chamei minha mãe para amparar meu ajudante, mas ela se recusou, o cheiro também a levou ao banheiro. Pelo menos ela conseguira usar a privada.
Sem ação, agachei-me no chão e chorei, chorei de impotência, da sensação da mais profunda solidão. Eu não tinha ninguém para dividir comigo aquele momento, dependia de estranhos. Não sei quanto tempo se passou até Osmira chegar e com sua determinação colocar uma ordem no caos que havia se instalado. Eu também necessitava urgentemente de um chuveiro.
Meu amigo por fim recobrou os sentidos, tratei de minimizar um pouco a sujeira de suas roupas, pedi todas as desculpas possíveis. Ele me olhava com pena e muito delicadamente me perguntou: "onde estão seus irmãos"? Sim, onde estava Wally????



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