domingo, 11 de janeiro de 2015

COMO UM DIA DE DOMINGO....

Nunca gostei de domingos. Até ao meio dia eles são suportáveis e a sensação de desamparo que eles me causam após este horário, senti-as em outros lugares do mundo. Até em Paris..
Nada ao amanhecer, daquele domingo, quatorze de dezembro de 1997 me levava a crer que o dia seria diferente.
Calor, abafado e úmido, sem sol, prenunciando uma chuva e acabou por não vir.
Fiz as rotinas matinais com calma e me dirigi ao apartamento de meus pais, cuja porta ficava em frente a minha. Esqueci de dizer que quando meu pai saiu do Hospital, ambas, minha mãe e eu, saímos dos apartamentos em que morávamos,embora muito perto um do outro e alugamos dois, num prédio novo, primeiro andar, com direito a um enorme terraço, onde meu pai poderia tomar sol e onde estaríamos a dois míseros passos de distância. Isso me pouparia de ter que enfrentar as ruas de madrugada, em caso de alguma necessidade, como muitas vezes ocorreu.
A noite havia sido muito complicada. Vitor, o cuidador, não teve um só momento de sono. meu pai estava agitado, agoniado com o excesso de secreção que precisava ser aspirada continuamente.
Seus sinais vitais estavam caindo vertiginosamente e sua respiração, mesmo aliviada pelo oxigênio, era sofrida.
Nem precisei perguntar ao Vitor: a resposta estava em seu olhar, assim como estava nos olhos já embaçados de meu pai. Sabíamos, era questão de horas. Tratamos de preparar minha mãe para o que estava por vir, mas ela parecia anestesiada. Não avisamos ninguém, não telefonamos para nenhum parente ou filho. Ficamos apenas nós, em nossas solidões. A rotina não foi mudada:  minha mãe, como sempre limpou a casa, fez o almoço, recolhemos e lavamos as roupas sujas da noite, ele foi higienizado, teve seus curativos trocados, recebeu sua alimentação. mesmo sem dizermos nada uns aos outros, queríamos que ele se fosse num ambiente totalmente conhecido, com os mesmos hábitos.
Não chorávamos, apenas estávamos mais calados.
O dia se passou assim, num ir e vir de seu quarto. Após o almoço, procurei tirar um pequeno descanso. Tinha certeza que a noite seria longa. Vitor também repousou um pouco, estava exausto.
Em minha cabeça, não vou negar, não vou me eximir, sabia que havia muitas maneiras de acabar com aquele calvário, mas jamais, em tempo algum, ceifaria a vida de meu pai. Para mim era fácil, eu trabalhava em um Hospital, tinha acesso a todos os medicamentos que propiciariam isso, mas a única coisa que fiz foi, ao final da tarde ir até meu local de trabalho, pegar uma ampola de Valium e água destilada. Meu desejo era apenas sedá-lo. Passei a tarde inteira ao seu lado. Conversava. Dizia-lhe que ele podia ir, que iríamos liberá-lo daquele corpo enfermo, que ele já havia cumprido seu papel por aqui. Pedi perdão por todas as brigas, por todos os momentos em que fomos infelizes, mas sobretudo dizia o quanto o havia amado e que também o meu perdão se fazia presente, pois muitas vezes ele não havia sido o pai com que sonhara. Essas coisas eram pequenas demais, não cabiam naquele momento. Relembrei vivências, recordações de infância, da sua mania de achar que o mundo se acabaria e que por isso era preciso deixar a despensa e as geladeiras sempre abarrotadas de víveres. agradeci por ele ter sido o pai que minha filha não teve
Falamos muito, em voz alta e em pensamento. Sabia que ele me entendia. Nunca estivemos tão próximos, nunca o senti tão pai e eu tão filha
Tomada de uma calma e antes que Vitor encerrasse seu plantão, fui até o Hospital e peguei o que necessitava. Não queria, de modo algum que ele visse a foice (será que ela existe mesmo?) da morte e também não desejava assistir impassível seus últimos estertores.
Queria a paz, um último momento sem desespero, uma partida tranquila, com a certeza de que um dia nos veríamos novamente.
Quando retornei, Vitor já estava de saída e Osmira deveria chegar em breve. Minha mãe estava ao telefone, falando com meu tio ao mesmo tempo em que assistia ao programa do Faustão. Não sei se ela tinha a exata noção do que estava se passando no quarto ao lado.
Osmira demorou a chegar, ela que era sempre tão pontual. Foi uma benção. Enquanto diluía a ampola de Valium na água destilada, continuava aquela conversa solitária. Desconectei o equipo do soro e infundi lentamente a medicação. Queria apenas um sono, um descanso, muito embora tivesse a plena convicção que só a morte o aliviaria. Mas não, eu não era em absoluto uma discípula de Hitler empreendendo a solução final.
Antes de infundir o Valium, verifiquei sua pressão que nesse momento estava em em 3x2mmg de mercúrio e seu pulso não passava de 15 batimentos por minuto. O quê poderia esperar?
Enquanto lentamente injetava o remédio na veia, permaneci naquela falação suave e surrealista. Rezava, pedia que espíritos de luz o viessem acompanhar na jornada definitiva.
Percebi que os segundos finais estavam chegando, chamei por minha mãe, ela não atendeu, continuou grudada no telefone. Tive que arrancar o fone com violência de suas mãos. Queria que ela lhe dissesse umas últimas palavras e ela as disse: "J. tu não sabes o quanto te amei". Ele cerrou os olhos no exato momento em que Osmira adentrava no quarto.  Então as lágrimas puderam escorrer sem pudor, sem estarem trancadas num banheiro ou num quarto com a porta fechada.
Tive o cuidado de de não deixar minha filha, então com dezessete anos assistir a cena, Chamei-a quando tudo estava acabado. Sua reação foi sair porta afora em busca de consolo com sua melhor amiga. Deixei-a ir. Acabara-se. Aos sessenta e sete anos, meu pai se fora. "Acabou", era tudo o que eu conseguia dizer para as pessoas que começavam a chegar. "Acabou".

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