quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

RELATOS PARKINSONIANOS - 14 - NÓS TAMBÉM ESTÁVAMOS DOENTES

RELATOS PARKINSONIANOS – 14 – NÓS TAMBÉM ESTÁVAMOS DOENTES
Engana-se quem pensa que um paciente é um ser único, que somente a ele cabe todas as agruras, todas as dores, ou toda a imobilidade, como era o caso de meu pai.
Muito embora os médicos insistissem em me dizer que ele estava fora de qualquer resquício de conexão com a realidade, eu tinha certeza que não era assim.
Havia momentos em que, mesmo sem falar com palavras, ele o fazia com os olhos e perdi a conta do quanto ele despejava em mim um pedido de socorro.
Também não era incomum, mudanças na sua expressão facial quando alguma visita chegava para lhe ver. Ele compreendia, ou quando se recusava a fazer os exercícios que a fonoaudióloga lhe impunha. Travava os dentes, numa atitude que demonstrava claramente que não queria falar nada. Encerrou-se numa mudez, que tenho para mim, era voluntária. Em todos os exames que lhe foram feitos, nenhum acusou alguma lesão na área da fala. Claro que quando se está traqueostomizado, o ato de pronunciar algumas palavras torna-se bem difícil, mas ele podia emitir algum som, mas por mais que tentássemos, a única forma de comunicação era através dos olhos ou do menear a cabeça. Ele costumava fazer isso quando era preciso fazer-lhe algum procedimento ou simplesmente quando parecia não querer ouvir, sobretudo se eram palavras encorajadoras. Ele sabia, meu pai continuou inteligente e sagaz até seus últimos momentos. Sabia que seu quadro era irreversível e nada do que lhe fosse dito mudaria a sua situação.
Após a segunda internação, devido à pneumonia, decidimos, por várias razões que a partir dali ele não seria mais internado. Tudo o que lhe acontecesse seria atendido em casa.
Havia também a situação financeira, que se agravava dia a dia. O plano de saúde já não permitia internações, já havíamos extrapolado os limites. Nossas últimas despesas com o Hospital foram pagas com louças destinadas a renovação da copa e da cozinha da instituição.
O dinheiro ia-se embora como uma cachoeira. Minha mãe conseguiu vender um terreno, o carro, mas era insuficiente. Manter enfermagem particular era extremamente caro e nós não iríamos abrir mão daquela ajuda, que em todos os sentidos era fundamental. Aliás, não abrimos mão de nada que pudesse conferir conforto e bem estar para meu pai.
Amigos e alguns parentes ajudavam com materiais, como fraldas, por exemplo, mas houve uma época em que precisei fazer, através do rádio, uma campanha. Necessitávamos de tudo e a Cremer, empresa de materiais hospitalares providenciou imediatamente uma grande quantidade de produtos que nos dariam algum respiro por um tempo.
O maior  problema era co relação às escaras. È certo que, depois que ele veio para Blumenau, nunca mais apresentou nenhuma, isto porque tinha um atendimento esmerado, que incluía uma higiene rigorosa, mudanças de decúbito, massagens e suportes nas áreas mais vulneráveis. Porém aquela imensa, que lhe tomava toda a região glútea, essa, por mais que tentássemos, não cicatrizava.
 Era profunda demais e por ali  ele perdia todas as proteínas que ajudariam a fechá-la. Iniciamos então um tratamento com um produto chamado Perative, que se constituía num líquido protéico. Lembro que na época, cada latinha custava por volta de R$ 5.00 e ele tomava através da sonda, três ao dia.
Além dos tratamentos preconizados pela medicina profissional eu buscava desesperadamente outros, mais alternativos.
Não sei o que me movia, pois sabia que nada reverteria aquela situação.
Não quero   me santificar, não pense você que eu acreditava ser melhor do que ninguém, mas era em mim que o peso era depositado, dia a dia.
Emagreci ao ponto de não ter mais roupas que me coubessem. Mesmo com a ajuda que a enfermagem prestava, toda a responsabilidade do que deveria ser feito, recaía sobre meus ombros.
Meus dias eram sempre do mesmo jeito: levantava cedo, ia trabalhar, não sem antes dar as instruções a quem estava de plantão. Meu turno ia até às !6.00 horas, mais os plantões de doze horas nos fins de semana. Ao sair do hospital, invariavelmente passava na farmácia e na loja de produtos médico-hospitalares. Todos os dias faltava alguma coisa. Junto às compras eu ainda carregava o pacote com os materiais de curativo que haviam sido esterilizados.
Chegando em casa, minha primeira providência era ir ao quarto do meu pai, saber como havia sido o dia. Então ia para meu apartamento, tomava banho e passava a preparar os  materiais que deveriam ser levados para o hospital na manhã seguinte.
Geralmente ajudava nos curativos noturnos e não raro tinha que desobstruir a sonda enteral ou mesmo trocá-la.   
Os meses passavam em câmera lenta. Já não tínhamos os nervos à flor da pele, eles nasciam de nossos poros como ervas daninhas, não havia como ceifá-los.
A exaustão tomava conta, não somente a física, mas sobretudo, a emocional, aquela que vem da desesperança, da impotência, da convivência diária com a morte, companheira constante, que nos acompanhava à mesa, à cama, ao banho.

Não a víamos, porém tínhamos certeza de sua presença,  e por vezes, silenciosamente, suplicávamos que ela tivesse clemência, mas esta é uma palavra que a morte desconhece.

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