Finalmente o período de festas passou e com ele, a impressão que tenho é que que meus fantasmas também passaram, foram de volta para um outro plano.
Estou pronta para voltar a escrever, muito embora a situação agora esteja muito complicada. Ontem meu sogro, de 92 sofreu um infarto. Está na UTI e será submetido a um cateterismo ainda hoje. Nunca pude imaginar o quanto meu marido ficaria abalado, mas é inevitável, mesmo seu pai tendo tanta idade e a morte seja uma presença constante, nunca nos acostumamos a ela.
Desde que aconteceu aquela fatalidade com meu pai, eu sabia, tinha consciência, uma consciência racional que não haveria volta. Anos de enfermagem me garantiam isso, mas como filha, eu alimentava uma esperança, uma milagre.
Hoje sei que teria feito tudo diferente, que jamais teria lutado tanto pela sua sobrevivência, impondo-lhe tratamentos invasivos, que não posso avaliar no quanto lhe causavam de dor, já que ele não demostrava nenhum sinal. Prefiro, ainda agora, acreditar num não sofrimento físico.
Mas sei que ele compreendia o que estava acontecendo. Tinha momentos de lucidez, embora não falasse, mas respondia a certos estímulos, como abrir e fechar os olhos a partir de algum comando verbal.
Durante esse período festivo pelo qual acabamos de passar, não pude, não consegui expressar nenhuma palavra, nem aqui, nem para as pessoas com as quais convivi. As lembranças afloravam dentro de mim, mas eu as deixava guardadas.
Naquela noite de 31 de dezembro de 1996, ficamos sozinhas, minha mãe e eu com meu que já havia saído da UTI e agora estava em um quarto. Meus irmãos, cada um com suas vidas, entraram em 1997, longe da agonia que nós três passávamos no hospital.
Compramos uma garrafa de champagne francês e a meia noite molhamos seus lábios, tomamos um pouquinho e o resto dividimos com os funcionários do setor. Mas a bebida, por ser brut, era amarga demais, não havia nada de suave ou levemente doce nela e em nossas bocas ela tinha gosto de fel.
Passada a meia noite e o simulacro de uma comemoração, levei minha mãe para casa e voltei para o hospital para a noite mais solitária da minha vida. Vi o dia clarear, não conseguia dormir e várias vezes descia, sentava-me numa mureta, fumava um cigarro , abaixava a cabeça e chorava. Tinha certeza de que não haveria outro reveillon com meu pai vivo.
Ainda não tínhamos contratado um equipe de enfermagem particular, então meus dias eram divididos entre o 4º, onde eu trabalhava com enfermeira da pediatria e o 5º andar, onde meu pai estava internado. A cada momento de folga eu subia as escadas e durante as tardes minha mãe vinha para lhe fazer companhia, mas exceto os momentos em que havia visita, ela dormia no sofá. Eu a recriminava, mas sabia que aquele sono era uma espécie de fuga, de proteção.
Naquele período em que ele ficou internado no Hospital Santa Isabel lutamos bravamente contra uma infecção hospitalar que ela havia contraído ainda em São Paulo. Foi mais um dos presente que o Hospital das Clínicas nos deu. Seu antibiograma demostrava que ele estava resistente a todos os antibióticos disponíveis, então conseguimos uma medicação nova, recém lançada nos Estados Unidos e a importávamos a um custo altíssimo, mas foi a única forma de debelar a infecção. Enquanto isso as escaras na região glúteo-sacral aumentavam consideravelmente, a despeito de todos os cuidados. Como a infeção havia sido controlada, optamos por uma cirurgia reparadora.
Lembro vivamente, eu empurrando a maca até o centro cirúrgico, conversando com ele, não exatamente uma conversa, mas um monólogo, que só era respondido através de seus olhos, agora bem expandidos para fora das órbitas, uma exoftalmia causada pela pressão intracraniana.
Não derramei uma só lágrima até ele ser anestesiado, porém quando saí do Centro Cirúrgico, desabei no corredor, sozinha. Sozinha com estive em todo o tempo em que ele conseguiu viver.
A cirurgia, no entanto não foi um sucesso. Houve uma rejeição e apesar de todos os esforços da equipe médica, tudo se abriu novamente e era possível até tocar na cabeça do fêmur. Já tínhamos então contratado uma enfermeira particular, Osmira, que havia trabalhado comigo quando exerci meu cargo de enfermeira no Asilo São Simeão. Ela foi um alento, desde o primeiro dia.
No início eu ainda conseguia ajudar a fazer os curativos, que se repetiam várias vezes ao dia, visto que apesar de todos os cuidados, a região logo se enchia de fezes, porém em certa altura, mesmo com toda a minha coragem, eu não podia mais acompanhar aqueles procedimentos. Não conseguia ver a extensão das lesões, era-me impossível debridar as partes necrosadas, mesmo que meu pai não esboçasse nenhuma reação dolorosa.
Não sei de onde meu pai arrancava forças para continuar lutando pela vida, nem minha mãe ou eu. o certo é que a despeito de tudo, uma rotina foi se formando. Uma rotina pesada. Eu não parei de trabalhar, meus irmãos pouco participavam, quando muito vinham para uma visita. Afinal, alguém tinha que assumir, e eu era a pessoa mais capacitada e disponível. Enfermeira, solteira, cabia a mim todas as decisões. Sozinha, sempre sozinha.
Em geral os dias eram sempre iguais, mas houve um momento em que todas as esperanças se aguçaram dentro de mim. Estávamos somente nós dois no quarto, eu conversando com minha mãe ao telefone. Quando estava a me despedir dela, pedi que ele desse um tchau e ele falou, com a voz muito fraca, mas ainda assim passível de compreensão, claramente ele falou tchau. Foi a única e última vez que ouvi a voz de meu pai.
Ele ainda permaneceu no Hospital por mais um mês, antes de ter alta e poder ser levado para casa, onde eu montei uma pequena UTI, graças a todo o aparato que o Hospital me deu e contratei mais auxiliares de enfermagem para ajudar, que foram de fundamental importância, não só para ele, mas para nós, porque se voce não sabe, quando alguém adoece com a gravidade que acometeu meu pai, quem fica ao lado, convivendo com a dor dia a dia, também adoece junto e infelizmente não há analgésico que diminua a dor, exceto se encher de anti-depressivo, entregar-se a ele na tentativa, quase sempre vã de continuar a vida com um certo tom de normalidade.
Amigo leitor, você está cansado? Não, por favor, não se canse, compartilhe comigo, não me abandone, porque não está sendo fácil fazer esta viagem ao passado e me isentar de maiores emoções. Preciso saber que não estou só e você precisa saber que a vida é assim e tudo o que nos aconteceu pode neste momento, estar acontecendo com você, ou poderá vir a ocorrer.
Portanto fique aí, me acompanhe nesta jornada que durou pouco mais de um ano. Talvez eu consiga lhe ensinar algumas coisas, talvez eu possa lhe incutir um pouco de força, de coragem, não só num caso como de meu pai, mas em todos cujos seus entes queridos estão sem nenhuma esperança de um final feliz. Não existe receita, apenas uma troca de experiências e uma tentativa de explicar que nunca, jamais em tempo algum o sofrimento deve ser despejado sobre os ombros de uma só pessoa, como se ela não tivesse também uma vida. Todos, todos mesmo, sem exceção devem participar, devem partilhar. É uma luta que deve ser conjunta. Nunca devemos devemos acreditar que um só ser possa de uma hora para outra ser transformado em um solitário Dom Quixote brigando com moinhos imaginários, para no fim encontrar a sua amada Dulcinéia.
Continue escrevendo, querida amiga, eu estou com você
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