sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

RELATOS PARKINSONIANOS - 16 - A RAZÃO ENFIM VENCE

Aos poucos, com o correr dos dias a razão foi dando lugar à emoção. Desde o primeiro momento, em que recebi o telefonema de minha mãe, de que meu pai havia entrado em coma, eu tivera a certeza plena de que seu quadro era irreversível, mas eu me recusava a ver, a acreditar. Continuava, a despeito  de todas as provas, acreditando num milagre.
Acho que a ficha só caiu mesmo quando o médico mais antigo do Hospital Santa Isabel faleceu. Na capela, onde ele estava sendo velado, uma amiga, também enfermeira, disse-me em tom muito condoído que em breve seria eu a estar velando meu pai.
Até então, o sentimento de filha se sobrepunha à racionalidade da medicina.Nada, nada mais poderia ser feito a não ser esperar a derradeira hora.
Isso se deu mais ou menos em agosto e meu estado era deplorável. Minha chefe, certo dia me chamou e me obrigou a tirar uns dias de férias, mesmo não estando na hora. Pediu que eu viajasse, que saísse de Blumenau, que por algum tempo tentasse me impôr alguns momentos de normalidade.
Fui para casa de uma amiga, em Florianópolis e ali fiquei por duas semanas. Mas aqueles poucos dias nada representavam perto dos meses em que eu estava convivendo com a dor. Acompanhei a morte da lady Di, passava os dias em frente à televisão, acho que era uma forma de me conectar com a realidade. Não adiantava fugir, não havia uma porta mágica que se abrisse pela qual eu pudesse sair.
Voltei decidida a fazer justiça. Entrei em contato com uma Associação, em São Paulo que tratava de erros médicos e para lá fui. Fiquei então sabendo que o tal cirurgião já era responsável por outros casos de insucesso, mas todo o processo teria que correr em São Paulo e como sempre, a única pessoa apta a fazer isso era eu. Mas como? Eu precisava trabalhar, não podia me ausentar e além disso, os custos das constantes viagens não eram poucos e nós já estávamos praticamente falidos. Mas o real motivo de eu não dar prosseguimento ao processo foi o cruel corporativismo entre os médicos. Malditos, malditos médicos que mesmo tendo a certeza do erro cometido, não podiam ferir a "ética".
Sei que eles são homens e portanto, passíveis de errar, mas jamais poderia aceitar a negligência, o descaso,o desrespeito. Foi muito fácil para aquele que levou meu pai à morte, embarcar numa primeira classe e fugir para os Estados Unidos. E nós, para onde iríamos escapar?
Simplesmente não havia rota de fuga..
Nunca me senti tão só, tão impotente, tão inútil.
Eu assistia de camarote à morte de meu pai.
Até então eu isentei,  nesses relatos a participação, ou melhor, a não participação da minha família.
Quando comecei a escrever, prometi a mim mesma deixar essa questão de fora e realmente, não vou me estender nela. Mas eu torno a perguntar: onde estavam todos?
 Ora, cada um seguindo suas vidas. saindo, se divertindo, fazendo raras visitas, como se estranhos fossem. Afinal, todos tinham uma VIDA, que não podia ser interrompida. Mas a minha, ah! essa não existia. Fácil assim. Joguem os problemas sobre uma pessoa e sigam seus caminhos. Liguem para saber como seu pai passou o dia, apareçam de vez em quando, façam cena de total desespero quando alguém lhe perguntar algo, mas se mantenham distantes, sejam apenas espectadores, não façam parte do show.
Minha revolta não tinha tamanho. Éramos quatro filhos, mas na verdade a prole era constituída de um só.
Durante muito tempo os julguei, se pudesse os condenaria à prisão perpétua, em masmorras. Mas hoje, depois de muita terapia, aprendi que as pessoas só dão aquilo que podem ou principalmente, aquilo que querem dar. Se há perdão? Não. Até tentei, mas descobri que há coisas que são imperdoáveis e não vou querer a essa altura de minha vida  posar de santa. A raiva talvez tenha diminuído, porém a mágoa, a incompreensão, não. Jamais, enquanto eu viver, esquecerei as horas em que passei ao lado de meu pai, proferindo um monólogo onde lhe punha a par do que se passava no mundo, enquanto ele me olhava e deixava claro que nada lhe interessava e a única coisa que ele desejava é que aquela situação chegasse ao fim.
Morte, onde andava você?  Por que não vinha fazer uma obra e caridade, o pegasse em seus braços e o levasse?
Talvez ela estivesse ocupada demais, afinal ela não tem mais do que dois braços para carregar milhões de pessoas que a aguardavam.
Ou quem sabe, de acordo com o espiritismo, ao qual eu me apegava em busca de alguma resposta plausível, tivesse uma justificativa. O quê meu pai e eu havíamos feito  de tão horroroso em outras encarnações que precisássemos juntos depurar nossos espíritos nessa vida?

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