Acreditei que poderia revolver o passado e sair impune das lembranças. Elas nunca são leves, mas se tornam incrivelmente pesadas nesta época do ano, quando parece que todas as nossas emoções e percepções estão à flor da pele.
Por isso, peço um tempo, até este período de festas passar e a vida seguir seu ritmo normal, sem trilha sonora de músicas natalinas invadindo nossas casas, sem o brilho alucinante das luzes que parecem incendiar a cidade e sobretudo sem Papai Noel com um saco cheio de presentes lindamente embalados em papeis e fitas que se descobre ao abri-los, não passarem de caixas de torturas.
Sim, tortura. A comissão da verdade que carregamos todos, expõe as dores, os sofrimentos e as perdas com maior veemência. E eu não quero esse presente embaixo do pinheirinho.
Então, peço-lhes licença para deixar os dias correrem, então volto ao passado. Agora é impossível.
Tenham todos um Natal feliz e entrem em 2015 cheios de coragem e esperança, principalmente para aqueles que vivenciam experiências semelhantes as minhas.
domingo, 21 de dezembro de 2014
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
RELATOS PARKINSONIANOS - 9 - TENTATIVAS DE FUGA
De certa forma nós estávamos presas. Minha mãe, eu, as vezes um irmão, ou um parente, em torno de todos nós havia barras de uma cela imaginária que nos encarceravam. Nossos corpos podiam sair, comer, dormir, mas nossos espíritos estavam presos naquela UTI.
Tentávamos tudo o que podíamos para parecer pessoas normais, mas acho que todos tinham vontade de sair correndo por aquelas avenidas sempre congestionadas, gritando e se perguntando o porquê daquele sofrimento, se meu pai merecia, se nós merecíamos, se era justo e sobretudo, onde andava DEUS. Muitas vezes me peguei fazendo esta pergunta, mas é óbvio, não existia uma resposta para nada. A única resposta é que por causa de um médico incompetente, meu pai estava morrendo.
Quando pensava nisso mais crescia em mim um sentimento de revolta. Que médico era aquele que sequer consentiu em nos receber, que largara tudo e viajara e principalmente, o que mais me doía era saber que eu havia ajudado a salvar tantas pessoas, minimizado tantas dores alheias e agora nada eu podia fazer.
Muito tempo depois, até mesmo depois de meu pai ter morrido, ficamos sabendo que o caso repercutira tanto que até profissionais de outros grandes hospitais de São Paulo sabiam e acompanhavam o que se sucedia. Não fora só um erro, fatalidades podem acontecer, os médicos são também humanos e são passíveis de falhas, mas o "médico" que operou meu pai, além de incompetente, era um covarde, pois quando se deu conta da barbárie que havia cometido, arrumou suas malas e fugiu. Porém não havia fuga para nenhum de nós. O máximo que conseguíamos eram alguns momentos de indulto, quando fingíamos que nada estava acontecendo e saíamos, íamos até o shopping, fazíamos umas compras, almoçávamos. Eram momentos raros, mas importantes para que nos sentíssemos vivas, pois quando percebíamos que a vida continuava, conseguíamos arranjar um pouco de energia para enfrentar mais um dia.
Antes que minhas férias chegassem ao fim minha mãe foi até Blumenau. Havia assuntos, problemas a serem resolvidos. Junto com a bagagem, jamais esquecerei a cena, ela levava consigo o bacalhau, aquele que ele havia comprado no Mercado Municipal, para ser feito no Natal.
Naqueles dias em que fiquei sozinha, não fazia nada, saía apenas para tentar comer e ir ao hospital. Estava emagrecendo, já não tinha uma roupa que me coubesse. Perdi dez quilos em um mês. Eu é que parecia doente.
Não havia um só dia em que não saísse do hospital, cruzando aquela rua que parecia um mercado árabe, em que não chorasse. Como era verão chovia praticamente todos os dias na cidade. Grandes temporais aos finais das tardes, alagavam tudo e eu ia andando naquela água imunda, sem nem pensar no risco que corria. Eu estava encharcada por fora e por dentro só cabia a lembrança dos olhos do meu pai, sempre abertos, me olhando e querendo entender. Ninguém, mas ninguém mesmo poderia me provar que ele não sabia quem eu era ou que não soubesse ou pelo menos tivesse uma leve noção do que lhe acontecera.
Eu travava com ele um monólogo, contava-lhe quem havia telefonado, quando a mãe voltaria, como estavam suas cachorrinhas, como havia sido o jogo do Corinthians, numa tentativa insana de lhe trazer a realidade. Nunca chorava ao lado dele. Tinha muito tempo para fazer isso depois de cruzar a porta de saída da UTI.
Enfim voltei para Blumenau, precisava trabalhar, mas logo voltaria pois o natal estava muito próximo e eu teria uns dias de folga.
Havíamos mudado de apart, o que estávamos hospedadas tinha aumentado muito as diárias. Perto dele também havia uma padaria, aliás, o que não falta em São Paulo é padaria. Comprávamos ali nossos alimentos e foi ali que assaram nosso peru, no dia de natal. Sim, uma parte de minha família foi para lá e fizemos uma pequena ceia e um brinde com champagne, todos voltados par o hospital que podíamos enxergar de longe. Brindamos com a vã esperança que no natal seguinte ele estivesse junto, mas sabíamos que isso nunca mais aconteceria, só não falávamos, guardávamos essa certeza a sete chaves em nossos corações, se é que ainda tínhamos um.
No dia seguinte, quase não pude ver meu pai, como sempre, havia algo acontecendo dentro da UTI. Mas eu precisava vê-lo, iria embora naquela noite, por isso me colei ao chão e não arredei os pés dali até me permitirem a entrada.
Encontrei um farrapo humano jogado sobre uma cama, sujo, com a barba por fazer, sufocando com a secreção acumulada na traqueostomia, a roupa de cama manchada de sangue.
Abracei-lhe como pude e segredei em seu ouvido: "pai, daqui a alguns dias estarás em casa, eu te prometo, te levarei embora deste inferno".
Saí dali e orientei minha mãe quanto aos trâmites que ela precisaria fazer: providenciar uma alta a pedido, contratar um avião com UTI, médicos e enfermeiros e voar para Santa Catarina.
Enquanto lá em São Paulo ela tomava as providências, eu em Blumenau, com todo o apoio do Hospital Santa Isabel, tomava as minhas.
No sábado, dia 29 de dezembro, com toda a família reunida no aeroporto de Navegantes, vimos o pequeno avião pousar. Meu amigo e enfermeiro chefe da UTI, Jarbas, havia ido comigo para acompanhá-lo na ambulância da Unimed. Nem perguntei se podia, fui andando pela pista, cheguei perto do avião e o vi deitado na maca. Segurei-lhe as mãos e disse:"não te prometi? estás em casa".
Tive certeza que seu olhar para mim foi de alívio.
Uma hora depois ele já estava sendo recebido pela enfermagem da UTI do Santa Isabel e pelas mãos carinhosas de minha colega Ivania. Quando retornei, após o almoço, encontrei outro paciente. Limpo, perfumado, com os curativos feitos, já tinha recebido a visita da minha amiga e fisioterapeuta Celize. Dormia. Acho que foi a primeira vez em muito tempo que ele dormiu em paz.
Tentávamos tudo o que podíamos para parecer pessoas normais, mas acho que todos tinham vontade de sair correndo por aquelas avenidas sempre congestionadas, gritando e se perguntando o porquê daquele sofrimento, se meu pai merecia, se nós merecíamos, se era justo e sobretudo, onde andava DEUS. Muitas vezes me peguei fazendo esta pergunta, mas é óbvio, não existia uma resposta para nada. A única resposta é que por causa de um médico incompetente, meu pai estava morrendo.
Quando pensava nisso mais crescia em mim um sentimento de revolta. Que médico era aquele que sequer consentiu em nos receber, que largara tudo e viajara e principalmente, o que mais me doía era saber que eu havia ajudado a salvar tantas pessoas, minimizado tantas dores alheias e agora nada eu podia fazer.
Muito tempo depois, até mesmo depois de meu pai ter morrido, ficamos sabendo que o caso repercutira tanto que até profissionais de outros grandes hospitais de São Paulo sabiam e acompanhavam o que se sucedia. Não fora só um erro, fatalidades podem acontecer, os médicos são também humanos e são passíveis de falhas, mas o "médico" que operou meu pai, além de incompetente, era um covarde, pois quando se deu conta da barbárie que havia cometido, arrumou suas malas e fugiu. Porém não havia fuga para nenhum de nós. O máximo que conseguíamos eram alguns momentos de indulto, quando fingíamos que nada estava acontecendo e saíamos, íamos até o shopping, fazíamos umas compras, almoçávamos. Eram momentos raros, mas importantes para que nos sentíssemos vivas, pois quando percebíamos que a vida continuava, conseguíamos arranjar um pouco de energia para enfrentar mais um dia.
Antes que minhas férias chegassem ao fim minha mãe foi até Blumenau. Havia assuntos, problemas a serem resolvidos. Junto com a bagagem, jamais esquecerei a cena, ela levava consigo o bacalhau, aquele que ele havia comprado no Mercado Municipal, para ser feito no Natal.
Naqueles dias em que fiquei sozinha, não fazia nada, saía apenas para tentar comer e ir ao hospital. Estava emagrecendo, já não tinha uma roupa que me coubesse. Perdi dez quilos em um mês. Eu é que parecia doente.
Não havia um só dia em que não saísse do hospital, cruzando aquela rua que parecia um mercado árabe, em que não chorasse. Como era verão chovia praticamente todos os dias na cidade. Grandes temporais aos finais das tardes, alagavam tudo e eu ia andando naquela água imunda, sem nem pensar no risco que corria. Eu estava encharcada por fora e por dentro só cabia a lembrança dos olhos do meu pai, sempre abertos, me olhando e querendo entender. Ninguém, mas ninguém mesmo poderia me provar que ele não sabia quem eu era ou que não soubesse ou pelo menos tivesse uma leve noção do que lhe acontecera.
Eu travava com ele um monólogo, contava-lhe quem havia telefonado, quando a mãe voltaria, como estavam suas cachorrinhas, como havia sido o jogo do Corinthians, numa tentativa insana de lhe trazer a realidade. Nunca chorava ao lado dele. Tinha muito tempo para fazer isso depois de cruzar a porta de saída da UTI.
Enfim voltei para Blumenau, precisava trabalhar, mas logo voltaria pois o natal estava muito próximo e eu teria uns dias de folga.
Havíamos mudado de apart, o que estávamos hospedadas tinha aumentado muito as diárias. Perto dele também havia uma padaria, aliás, o que não falta em São Paulo é padaria. Comprávamos ali nossos alimentos e foi ali que assaram nosso peru, no dia de natal. Sim, uma parte de minha família foi para lá e fizemos uma pequena ceia e um brinde com champagne, todos voltados par o hospital que podíamos enxergar de longe. Brindamos com a vã esperança que no natal seguinte ele estivesse junto, mas sabíamos que isso nunca mais aconteceria, só não falávamos, guardávamos essa certeza a sete chaves em nossos corações, se é que ainda tínhamos um.
No dia seguinte, quase não pude ver meu pai, como sempre, havia algo acontecendo dentro da UTI. Mas eu precisava vê-lo, iria embora naquela noite, por isso me colei ao chão e não arredei os pés dali até me permitirem a entrada.
Encontrei um farrapo humano jogado sobre uma cama, sujo, com a barba por fazer, sufocando com a secreção acumulada na traqueostomia, a roupa de cama manchada de sangue.
Abracei-lhe como pude e segredei em seu ouvido: "pai, daqui a alguns dias estarás em casa, eu te prometo, te levarei embora deste inferno".
Saí dali e orientei minha mãe quanto aos trâmites que ela precisaria fazer: providenciar uma alta a pedido, contratar um avião com UTI, médicos e enfermeiros e voar para Santa Catarina.
Enquanto lá em São Paulo ela tomava as providências, eu em Blumenau, com todo o apoio do Hospital Santa Isabel, tomava as minhas.
No sábado, dia 29 de dezembro, com toda a família reunida no aeroporto de Navegantes, vimos o pequeno avião pousar. Meu amigo e enfermeiro chefe da UTI, Jarbas, havia ido comigo para acompanhá-lo na ambulância da Unimed. Nem perguntei se podia, fui andando pela pista, cheguei perto do avião e o vi deitado na maca. Segurei-lhe as mãos e disse:"não te prometi? estás em casa".
Tive certeza que seu olhar para mim foi de alívio.
Uma hora depois ele já estava sendo recebido pela enfermagem da UTI do Santa Isabel e pelas mãos carinhosas de minha colega Ivania. Quando retornei, após o almoço, encontrei outro paciente. Limpo, perfumado, com os curativos feitos, já tinha recebido a visita da minha amiga e fisioterapeuta Celize. Dormia. Acho que foi a primeira vez em muito tempo que ele dormiu em paz.
RELATOS PARKINSONIANOS - 8 - OS DIAS ERAM SEMPRE IGUAIS
Não havia sinais de melhora no estado neurológico. Todos os dias acordávamos com uma esperança que sabíamos ser falsa de que "hoje, hoje ele vai estar um pouquinho melhor".
As visitas eram sempre as dezesseis (?) horas. Saíamos então do apart, subíamos a passarela e começávamos o caminho do inferno.
A rua em frente ao hospital mais se assemelhava a uma grande feira. Havia de um tudo para se comprar: calcinhas, sombrinhas, bolsas, bolachas, refrigerantes e yogurte, que era vendido em sacos plásticos e cujos restos lavavam o asfalto, deixando um cheiro azedo no ar quente do começo do verão.
Entrávamos então e íamos direto a um local para nos cadastrar. Ali, desde o início, ficamos sabendo que para podermos continuar as visitas era preciso providenciar vinte litros de sangue. Ficamos atônitas, afinal não conhecíamos ninguém em São Paulo, exceto o primo de meu pai. E nem que tirassem todo o nosso sangue, jamais supriríamos a quantia seria solicitada.
O telefone do hotel tocava a todo instante, as pessoas não paravam de ligar para saber como nós estávamos e numa dessas ligações, conversei com minha chefe, e o Hospital Santa Isabel, sem que nós soubéssemos providenciou uma campanha de doação e informou ao Hospital das Clínicas que já dispunha do sangue necessário. Ficou acordado entre as duas instituições que um comprovante seria remetido para São Paulo e o sangue usado em Blumenau. No dia em que soubemos disso, choramos de emoção e agradecimento ao Hospital Santa Isabel enquanto preenchíamos nossas fichas para podermos entrar na UTI. Foi um dos primeiros, entre muitos atos do Hospital onde eu trabalhava. Jamais terei palavras suficientes para agradecer tudo o quanto foi feito por nós.
Depois de preencher as fichas, começávamos uma jornada entre paredes e rampas de concreto. A sensação era de estarmos entrando em outra dimensão. Tudo ao nosso redor era cinza, com pouca luz e antes de chegarmos à UTI éramos revistadas, tínhamos que esvaziar nossas bolsas e bolsos para provar que não estávamos levando comida para o paciente. Era uma situação surreal, visto que era um setor onde os pacientes estavam inconscientes, geralmente entubados, com sondas enterais e que portanto, não tinham condições de deglutir nada.
Certo dia fiquei tão irritada que perguntei para o funcionário que nos revistava e que já nos conhecia, pois a esta altura meu pai já estava há quase um mês internado, se ele pensava que na minha bolsa eu levava uma marmita com uma feijoada.
Então, após essa última barreira. caminhávamos por um longo corredor e logo avistávamos, lá no fundo, um aglomerado de pessoas que também iam ver seus parentes.
Não havia sequer uma cadeira, uma janela. Muitas vezes, como já relatei, ficávamos horas ali em pé, compartilhando nossas dores em conjunto. Em algumas ocasiões alguém recebia a noticia que seu parente havia falecido; era sempre um momento de grande comoção. Nós também tínhamos esse medo.
Quando enfim a porta da UTI se abria, alguém era chamado para entrar e ali mesmo recebia um relatório sucinto de como estava o seu doente.
Nós, invariavelmente recebíamos as mesmas informações: "não houve melhora no quadro neurológico". Se não havia melhora, havia no entanto piora no estado geral. Meu pai há muito estava com traqueostomia, respirando por aparelhos, sondado. Fomos informadas que ele havia contraído uma infecção hospitalar e as escaras já haviam começado.
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Fiquei louca, queria matar aquela enfermeira japonesa, antipática e seca. Sabia que as escaras são lesões que ocorrem em consequência de muita pressão sobre determinada área do corpo. O sangue então não circula por ali, os tecidos necrosam e se formam feridas horríveis.
Quando meu pai deu entrada na UTI, era um homem ainda nutrido, hígido e as escaras aconteciam por falta de cuidados da enfermagem. Um paciente acamado permanentemente necessita ser mudado de posição pelo menos a cada duas horas, a higiene deve ser rígida e apoios devem ser colocados nas regiões mais suscetíveis. Mas ali nada disso era feito. Como as mãos de meu pai não se movimentavam e ele as mantinha fechadas como conchas, até nas palmas das mãos haviam escaras porque o polegar pressionava a área.
Quando questionei com a enfermeira como aquilo podia estar acontecendo, recebi uma resposta grosseira e fui informada que precisava comprar um colchão extrapiramidal, daqueles de espuma que parece com uma caixa de ovos. No dia seguinte, após uma extenuante peregrinação de ônibus e a pé, consegui encontrar a loja que haviam me recomendado e comprei o colchão, mas agora o estrago já estava feito.
Meus irmãos estavam indo para lá, pois eu fazia aniversário no final de novembro. De alguma forma queriam comemorar um pouquinho, fazer um teatro de que a vida continuava em seu ritmo normal.
Eu estava fazendo trinta e nove anos e não houve "parabéns prá você". A minha festa foi regada à lágrimas derramadas sobre o peito de meu pai, que me olhava com os que olhos agora, devido ao aumento da pressão intracraniana, pareciam saltar das órbitas. Mas sei que ele sabia que data era aquela, pois ele também deixou correr umas lágrimas, e acreditem foi o meu melhor presente, pois ali, naquele instante tão breve, soube que meu pai ainda tinha momentos de lucidez.
Minhas férias estavam terminando, em breve teria que voltar para Blumenau e deixar minha mãe sozinha, então antes de ir, criamos coragem e fomos ao setor onde meu pai havia ficado internado antes da cirurgia para pegar seus pertences.Colocamos tudo em uma sacola: pijamas, livros, o seu boné, produtos de higiene e saímos daquele quarto com a certeza de que jamais meu pai voltaria a ser o que era. Caminhamos por um pátio interno e ali então, de braços dados, choramos. Choramos muito, mais do que já havíamos chorado desde que ele entrou em coma.
Meu pai não era mais uma "pessoa". Era um ser que vivia apenas porque respirava com a ajuda de aparelhos, cuja carne apodrecia e o cérebro era agora um órgão praticamente inativo, que havia sido machucado e não existia mercúrio cromo ou band-aid que fechasse aquela ferida. Ela ficaria aberta até sua morte.
As visitas eram sempre as dezesseis (?) horas. Saíamos então do apart, subíamos a passarela e começávamos o caminho do inferno.
A rua em frente ao hospital mais se assemelhava a uma grande feira. Havia de um tudo para se comprar: calcinhas, sombrinhas, bolsas, bolachas, refrigerantes e yogurte, que era vendido em sacos plásticos e cujos restos lavavam o asfalto, deixando um cheiro azedo no ar quente do começo do verão.
Entrávamos então e íamos direto a um local para nos cadastrar. Ali, desde o início, ficamos sabendo que para podermos continuar as visitas era preciso providenciar vinte litros de sangue. Ficamos atônitas, afinal não conhecíamos ninguém em São Paulo, exceto o primo de meu pai. E nem que tirassem todo o nosso sangue, jamais supriríamos a quantia seria solicitada.
O telefone do hotel tocava a todo instante, as pessoas não paravam de ligar para saber como nós estávamos e numa dessas ligações, conversei com minha chefe, e o Hospital Santa Isabel, sem que nós soubéssemos providenciou uma campanha de doação e informou ao Hospital das Clínicas que já dispunha do sangue necessário. Ficou acordado entre as duas instituições que um comprovante seria remetido para São Paulo e o sangue usado em Blumenau. No dia em que soubemos disso, choramos de emoção e agradecimento ao Hospital Santa Isabel enquanto preenchíamos nossas fichas para podermos entrar na UTI. Foi um dos primeiros, entre muitos atos do Hospital onde eu trabalhava. Jamais terei palavras suficientes para agradecer tudo o quanto foi feito por nós.
Depois de preencher as fichas, começávamos uma jornada entre paredes e rampas de concreto. A sensação era de estarmos entrando em outra dimensão. Tudo ao nosso redor era cinza, com pouca luz e antes de chegarmos à UTI éramos revistadas, tínhamos que esvaziar nossas bolsas e bolsos para provar que não estávamos levando comida para o paciente. Era uma situação surreal, visto que era um setor onde os pacientes estavam inconscientes, geralmente entubados, com sondas enterais e que portanto, não tinham condições de deglutir nada.
Certo dia fiquei tão irritada que perguntei para o funcionário que nos revistava e que já nos conhecia, pois a esta altura meu pai já estava há quase um mês internado, se ele pensava que na minha bolsa eu levava uma marmita com uma feijoada.
Então, após essa última barreira. caminhávamos por um longo corredor e logo avistávamos, lá no fundo, um aglomerado de pessoas que também iam ver seus parentes.
Não havia sequer uma cadeira, uma janela. Muitas vezes, como já relatei, ficávamos horas ali em pé, compartilhando nossas dores em conjunto. Em algumas ocasiões alguém recebia a noticia que seu parente havia falecido; era sempre um momento de grande comoção. Nós também tínhamos esse medo.
Quando enfim a porta da UTI se abria, alguém era chamado para entrar e ali mesmo recebia um relatório sucinto de como estava o seu doente.
Nós, invariavelmente recebíamos as mesmas informações: "não houve melhora no quadro neurológico". Se não havia melhora, havia no entanto piora no estado geral. Meu pai há muito estava com traqueostomia, respirando por aparelhos, sondado. Fomos informadas que ele havia contraído uma infecção hospitalar e as escaras já haviam começado.
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Fiquei louca, queria matar aquela enfermeira japonesa, antipática e seca. Sabia que as escaras são lesões que ocorrem em consequência de muita pressão sobre determinada área do corpo. O sangue então não circula por ali, os tecidos necrosam e se formam feridas horríveis.
Quando meu pai deu entrada na UTI, era um homem ainda nutrido, hígido e as escaras aconteciam por falta de cuidados da enfermagem. Um paciente acamado permanentemente necessita ser mudado de posição pelo menos a cada duas horas, a higiene deve ser rígida e apoios devem ser colocados nas regiões mais suscetíveis. Mas ali nada disso era feito. Como as mãos de meu pai não se movimentavam e ele as mantinha fechadas como conchas, até nas palmas das mãos haviam escaras porque o polegar pressionava a área.
Quando questionei com a enfermeira como aquilo podia estar acontecendo, recebi uma resposta grosseira e fui informada que precisava comprar um colchão extrapiramidal, daqueles de espuma que parece com uma caixa de ovos. No dia seguinte, após uma extenuante peregrinação de ônibus e a pé, consegui encontrar a loja que haviam me recomendado e comprei o colchão, mas agora o estrago já estava feito.
Meus irmãos estavam indo para lá, pois eu fazia aniversário no final de novembro. De alguma forma queriam comemorar um pouquinho, fazer um teatro de que a vida continuava em seu ritmo normal.
Eu estava fazendo trinta e nove anos e não houve "parabéns prá você". A minha festa foi regada à lágrimas derramadas sobre o peito de meu pai, que me olhava com os que olhos agora, devido ao aumento da pressão intracraniana, pareciam saltar das órbitas. Mas sei que ele sabia que data era aquela, pois ele também deixou correr umas lágrimas, e acreditem foi o meu melhor presente, pois ali, naquele instante tão breve, soube que meu pai ainda tinha momentos de lucidez.
Minhas férias estavam terminando, em breve teria que voltar para Blumenau e deixar minha mãe sozinha, então antes de ir, criamos coragem e fomos ao setor onde meu pai havia ficado internado antes da cirurgia para pegar seus pertences.Colocamos tudo em uma sacola: pijamas, livros, o seu boné, produtos de higiene e saímos daquele quarto com a certeza de que jamais meu pai voltaria a ser o que era. Caminhamos por um pátio interno e ali então, de braços dados, choramos. Choramos muito, mais do que já havíamos chorado desde que ele entrou em coma.
Meu pai não era mais uma "pessoa". Era um ser que vivia apenas porque respirava com a ajuda de aparelhos, cuja carne apodrecia e o cérebro era agora um órgão praticamente inativo, que havia sido machucado e não existia mercúrio cromo ou band-aid que fechasse aquela ferida. Ela ficaria aberta até sua morte.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
RELATOS PARKINSONIANOS- 7-O COMEÇO DA DURA ROTINA
Ontem fez dezessete anos que meu pai descansou. Durante mais de um ano ele sofreu, nós sofremos e víamos, dia a dia qualquer resquício de melhora, ir-se embora.
De informação concreta, o que realmente consegui do médico japonês que o atendia é que ele estava em "coma vigil", estado vegetativo, onde o cérebro não possui mais função voluntária, só sobra a parte automatizada, abrir e fechar os olhos, dormir e acordar.
Como já sabemos que o cérebro é muito complexo, é um estado que tem mais perguntas que respostas, mas existe a certeza que a pessoa não tem consciência plena do que está lhe acontecendo. mesmo a dor é sentida como um estímulo.
Existem alguns casos em que ocorre uma reversão, mas nem sempre o paciente sai deste quadro. Em palavras mais simples, estar em coma é estar numa fronteira muito tênue, entre a vida e a morte.
Se há um lugar no mundo que eu não desejo ver jamais e muito menos frequentar é o Hospital das Clinicas. Sei que é um hospital referência, sei que é o maior da América Latina, conheço suas capacidades, seus recursos. Tenho certeza de que muitos pacientes graves que ali são internados voltam à vida. Como enfermeira, fui treinada a manter uma certa frieza em relação aos pacientes.
De fato, somos obrigadas a um certo distanciamento, sob pena de acabar por ficarmos doentes da alma. Hospital é sinônimo de sofrimento. Mas de alguma forma, procuramos manter em nossos íntimos um certo nível de humanidade, de compaixão. Não importa o tamanho do hospital ou de quantas pessoas são atendidas ali diariamente. É preciso não perder de vista jamais que o paciente é um ser humano, não uma máquina, não um número fixado num leito.
Entendo o ritmo de vida dos paulistanos, mas não há justificativa para tanta indiferença. Nós não éramos nada.Éramosatendidos em quase todos os lugares com gentileza, menos no hospital e acho que aquela secura se estendia também aos pacientes, não somente à família.
Após o choque inicial, ficamos somente minha mãe eu em São Paulo. Saímos do hotel em que estávamos e nos mudamos para um flat em frente ao hospital, bastava atravessar uma passarela para se abrir a porta do inferno.
Não lembro com exatidão quantos minutos podíamos ficar ao lado de meu pai.
Mas não esqueço nenhum dos procedimentos a que tínhamos que nos submeter para poder vê-lo, isso quando conseguíamos, pois muitas vezes a UTI estava atendendo algum caso de maior importância e assim não permitia visitas, mesmo que essas visitas fossem para um filho, que essas mães tivessem enfrentado verdadeiras viagens de horas para verem seus entes queridos.
Sei que às vezes realmente ocorria um caso muito grave: um paciente precisando ser entubado, ou estar sendo submetido a uma manobra para reverter uma parada cárdiorespiratória. O que não entendia era o porquê de resolverem dar banho em algum paciente bem na hora da visita. O banho era sempre a desculpa favorita deles e eu ficava me perguntando se eles não conheciam algo tão simples como um biombo. Abriam a porta e claro nos deixavam esperançosos, para dizer após uma longa espera que "hoje não tem visita, estamos dando um banho". Porta fechada, cada pessoa que se encontrava naquele corredor também se fechava em sua dor e pegava o caminho de volta. Não nos era dado nem sequer uma informação. Tínhamos que esperar mais um dia para sabermos alguma coisa.
Então, minha mãe e eu nos dávamos os braços, engolíamos o choro e retornávamos ao flat. Passávamos sempre numa padaria, maravilhosa por sinal e ali procurávamos por comidas que de certa forma nos compensassem com seus sabores, preenchessem o vazio. Era só um disfarce, era uma maneira de acreditarmos que tínhamos saído de um pesadelo e voltado para a dita vida "normal".
Não, não se iludam. A vida nunca mais volta à normalidade.
Eu ficava olhando pela janela do flat imaginando qual seria a janela do hospital onde meu pai lutava por sobreviver. Ali eu rezava, eu me revoltava, e ora eu acreditava numa possível melhora, ora minha esperança me abandonava por completo.
Só conseguíamos dormir à custa de remédios. Nós estávamos tão doentes quanto meu pai, com a diferença que tínhamos consciência de tudo e para a dor que sentíamos, não havia analgésico que a diminuísse.
De informação concreta, o que realmente consegui do médico japonês que o atendia é que ele estava em "coma vigil", estado vegetativo, onde o cérebro não possui mais função voluntária, só sobra a parte automatizada, abrir e fechar os olhos, dormir e acordar.
Como já sabemos que o cérebro é muito complexo, é um estado que tem mais perguntas que respostas, mas existe a certeza que a pessoa não tem consciência plena do que está lhe acontecendo. mesmo a dor é sentida como um estímulo.
Existem alguns casos em que ocorre uma reversão, mas nem sempre o paciente sai deste quadro. Em palavras mais simples, estar em coma é estar numa fronteira muito tênue, entre a vida e a morte.
Se há um lugar no mundo que eu não desejo ver jamais e muito menos frequentar é o Hospital das Clinicas. Sei que é um hospital referência, sei que é o maior da América Latina, conheço suas capacidades, seus recursos. Tenho certeza de que muitos pacientes graves que ali são internados voltam à vida. Como enfermeira, fui treinada a manter uma certa frieza em relação aos pacientes.
De fato, somos obrigadas a um certo distanciamento, sob pena de acabar por ficarmos doentes da alma. Hospital é sinônimo de sofrimento. Mas de alguma forma, procuramos manter em nossos íntimos um certo nível de humanidade, de compaixão. Não importa o tamanho do hospital ou de quantas pessoas são atendidas ali diariamente. É preciso não perder de vista jamais que o paciente é um ser humano, não uma máquina, não um número fixado num leito.
Entendo o ritmo de vida dos paulistanos, mas não há justificativa para tanta indiferença. Nós não éramos nada.Éramosatendidos em quase todos os lugares com gentileza, menos no hospital e acho que aquela secura se estendia também aos pacientes, não somente à família.
Após o choque inicial, ficamos somente minha mãe eu em São Paulo. Saímos do hotel em que estávamos e nos mudamos para um flat em frente ao hospital, bastava atravessar uma passarela para se abrir a porta do inferno.
Não lembro com exatidão quantos minutos podíamos ficar ao lado de meu pai.
Mas não esqueço nenhum dos procedimentos a que tínhamos que nos submeter para poder vê-lo, isso quando conseguíamos, pois muitas vezes a UTI estava atendendo algum caso de maior importância e assim não permitia visitas, mesmo que essas visitas fossem para um filho, que essas mães tivessem enfrentado verdadeiras viagens de horas para verem seus entes queridos.
Sei que às vezes realmente ocorria um caso muito grave: um paciente precisando ser entubado, ou estar sendo submetido a uma manobra para reverter uma parada cárdiorespiratória. O que não entendia era o porquê de resolverem dar banho em algum paciente bem na hora da visita. O banho era sempre a desculpa favorita deles e eu ficava me perguntando se eles não conheciam algo tão simples como um biombo. Abriam a porta e claro nos deixavam esperançosos, para dizer após uma longa espera que "hoje não tem visita, estamos dando um banho". Porta fechada, cada pessoa que se encontrava naquele corredor também se fechava em sua dor e pegava o caminho de volta. Não nos era dado nem sequer uma informação. Tínhamos que esperar mais um dia para sabermos alguma coisa.
Então, minha mãe e eu nos dávamos os braços, engolíamos o choro e retornávamos ao flat. Passávamos sempre numa padaria, maravilhosa por sinal e ali procurávamos por comidas que de certa forma nos compensassem com seus sabores, preenchessem o vazio. Era só um disfarce, era uma maneira de acreditarmos que tínhamos saído de um pesadelo e voltado para a dita vida "normal".
Não, não se iludam. A vida nunca mais volta à normalidade.
Eu ficava olhando pela janela do flat imaginando qual seria a janela do hospital onde meu pai lutava por sobreviver. Ali eu rezava, eu me revoltava, e ora eu acreditava numa possível melhora, ora minha esperança me abandonava por completo.
Só conseguíamos dormir à custa de remédios. Nós estávamos tão doentes quanto meu pai, com a diferença que tínhamos consciência de tudo e para a dor que sentíamos, não havia analgésico que a diminuísse.
domingo, 14 de dezembro de 2014
RELATOS PARKINSONIANOS - 6 - O DIA
Dezoito de novembro de 1997. Em Blumenau, meus tios, minha filha e eu almoçávamos numa comemoração dupla, o aniversário de minha tia e a cirurgia de meu pai.
Entre nós havia uma mistura de alegria e tensão. Os celulares ainda não eram muito comuns, era o início do seu aparecimento, sendo assim, eu só poderia ter alguma notícia do que havia ocorrido naquela manhã, em São Paulo, quando chegasse em casa, após o almoço.
Mal pisei em casa, peguei o telefone e liguei. Logo percebi, pela voz de minha mãe, que algo não estava bem.
- Ana Luiza, não sei o que aconteceu com o pai. Ele veio bonzinho do centro cirúrgico, falando, contando que durante todo o procedimento tocava música e ele não tremia mais. Só que de repente ele começou a reclamar de frio e foi ficando sonolento. Eu o chamava, tentava acordá-lo, mas ele não respondia, então chamei a enfermagem, as enfermeiras fizeram várias coisas para reanimá-lo, apertavam o osso do peito com os nós dos dedos, prá ver se ele acordava,mas nada, ele parecia morto. Então o levaram para a UTI.
_ I! mãe, deu merda! O pai entrou em coma.
Do outro lado da linha uns segundos de silêncio e depois um choro incontido. Acho que ela só entendeu que eu iria para São Paulo no dia seguinte.
Telefonei para todos: irmãos, tios, amigos. De repente meu apartamento ficou cheio de gente.
Tentei falar com a UTI do Hospital das Clínicas, mas ninguém quis me informar nada. Apelei então para a diretora do Hospital Santa Isabel, com a qual eu tinha mais do laços profissionais, nos conhecíamos desde crianças e então por seu intermédio fiquei sabendo que meu pai entrara em coma porque durante a cirurgia, romperam um vaso, extravasou sangue pelo cérebro.
De modo mais simples, era como se meu pai houvesse sofrido um derrame.
Ainda não sabiam o tamanho do estrago, estavam em exames, precisávamos aguardar. Tínhamos acabado de entrar num pesadelo, que nem Salvador Dali seria capaz de retratar nem em seu quadro mais surrealista.
Agora vou ter que ser um pouquinho acadêmica para poder explicar com clareza a cirurgia a qual meu pai tinha se submetido, que se denomina estereotaxia. Como isso é feito?
Primeiro raspam os cabelos do paciente e sob anestesia local fazem um pequeno orifício no crânio, de mais ou menos um centímetro, chegando até o cérebro. Tudo é monitorado por imagens obtidas através de tomografia ou ressonância magnética. É com o auxílio desses aparelhos que o cirurgião consegue localizar o local lesionado, que como já disse antes, fica na substância negra.
Então se introduz uma agulha de biópsia ou de punção até o local onde os neurônios estão em processo suicida. Inicia-se uma estimulação elétrica nas três estruturas que formam a substância negra: o tálamo, o globo pálido e o núcleo subtalâmico.
A estimulação elétrica, de alta frequência resulta na perda de excitabilidade das células, ou seja levam-nas as funcionar normalmente para que haja um controle da motricidade.
Durante todo o procedimento, o paciente permanece acordado. É ele quem vai relatando como está a intensidade dos tremores.
Com o meu pai foi um sucesso. Ele parou de tremer. Só que , não sei se por incompetência, descaso, negligência, durante e introdução da agulha um vaso sanguíneo foi perfurado, não sei se uma veia ou uma artéria e o sangue começou a se espalhar.
Até hoje não consigo entender como os médicos não se deram conta do que estava acontecendo. Estava tudo ali, numa tela de um tomógrafo, qualquer uma veria que que o cérebro estava sendo invadido por uma enchente de sangue.
Poderiam ter fechado aquele vaso, poderiam ter drenado o sangue, assim evitariam a hemorragia que se alastrava, evitariam o coágulo que posteriormente se forma, não haveria um hematoma e a consequente morte daquela região.
Mas nada fizeram. Tão pouco explicaram com clareza para minha mãe, ou para mim. Só a sabiam dizer que meu pai sofrera uma hemorragia, que estava em coma e que era necessário esperar para ver se o sangue seria naturalmente absorvido pelo tecido cerebral.
Quarenta e oito horas depois, eu já em São Paulo, a situação não havia mudado. Houve sim, um aumento da pressão intracraniana e era necessário a colocação de uma válvula no cérebro, ligada a um catéter que levasse aquele sangue represado embora.
Lembro tão bem que este procedimento estava sendo feito à noite e da janela do corredor do hotel em que estávamos podíamos visualizar o Hospital das Clínicas. Ficamos todos ali, rezando, esperando que nossas preces atravessassem a muralha de prédios em volta e chegassem até meu pai. Mas elas não chegaram, ficaram pelo caminho, talvez presas num daqueles engarrafamentos monstruosos que ocorriam todos os dias.
Só iríamos saber o resultado no dia seguinte, era norma do hospital não dar informações pelo telefone. Aliás, o hospital tem tantas normas que acredito que uma delas proíbe o médico de falar com a família. Jamais vi a cara do médico que operou meu pai. Lembro que se chamava Salomão, porém não me recordo o sobrenome. Ele se recusou a nos atender e em seguida viajou para os Estados Unidos.
Meu pai ficou então nas UTI neurológica, nas mãos de um residente japonês, mais frio e distante que o Polo Norte.
Entre nós havia uma mistura de alegria e tensão. Os celulares ainda não eram muito comuns, era o início do seu aparecimento, sendo assim, eu só poderia ter alguma notícia do que havia ocorrido naquela manhã, em São Paulo, quando chegasse em casa, após o almoço.
Mal pisei em casa, peguei o telefone e liguei. Logo percebi, pela voz de minha mãe, que algo não estava bem.
- Ana Luiza, não sei o que aconteceu com o pai. Ele veio bonzinho do centro cirúrgico, falando, contando que durante todo o procedimento tocava música e ele não tremia mais. Só que de repente ele começou a reclamar de frio e foi ficando sonolento. Eu o chamava, tentava acordá-lo, mas ele não respondia, então chamei a enfermagem, as enfermeiras fizeram várias coisas para reanimá-lo, apertavam o osso do peito com os nós dos dedos, prá ver se ele acordava,mas nada, ele parecia morto. Então o levaram para a UTI.
_ I! mãe, deu merda! O pai entrou em coma.
Do outro lado da linha uns segundos de silêncio e depois um choro incontido. Acho que ela só entendeu que eu iria para São Paulo no dia seguinte.
Telefonei para todos: irmãos, tios, amigos. De repente meu apartamento ficou cheio de gente.
Tentei falar com a UTI do Hospital das Clínicas, mas ninguém quis me informar nada. Apelei então para a diretora do Hospital Santa Isabel, com a qual eu tinha mais do laços profissionais, nos conhecíamos desde crianças e então por seu intermédio fiquei sabendo que meu pai entrara em coma porque durante a cirurgia, romperam um vaso, extravasou sangue pelo cérebro.
De modo mais simples, era como se meu pai houvesse sofrido um derrame.
Ainda não sabiam o tamanho do estrago, estavam em exames, precisávamos aguardar. Tínhamos acabado de entrar num pesadelo, que nem Salvador Dali seria capaz de retratar nem em seu quadro mais surrealista.
Agora vou ter que ser um pouquinho acadêmica para poder explicar com clareza a cirurgia a qual meu pai tinha se submetido, que se denomina estereotaxia. Como isso é feito?
Primeiro raspam os cabelos do paciente e sob anestesia local fazem um pequeno orifício no crânio, de mais ou menos um centímetro, chegando até o cérebro. Tudo é monitorado por imagens obtidas através de tomografia ou ressonância magnética. É com o auxílio desses aparelhos que o cirurgião consegue localizar o local lesionado, que como já disse antes, fica na substância negra.
Então se introduz uma agulha de biópsia ou de punção até o local onde os neurônios estão em processo suicida. Inicia-se uma estimulação elétrica nas três estruturas que formam a substância negra: o tálamo, o globo pálido e o núcleo subtalâmico.
A estimulação elétrica, de alta frequência resulta na perda de excitabilidade das células, ou seja levam-nas as funcionar normalmente para que haja um controle da motricidade.
Durante todo o procedimento, o paciente permanece acordado. É ele quem vai relatando como está a intensidade dos tremores.
Com o meu pai foi um sucesso. Ele parou de tremer. Só que , não sei se por incompetência, descaso, negligência, durante e introdução da agulha um vaso sanguíneo foi perfurado, não sei se uma veia ou uma artéria e o sangue começou a se espalhar.
Até hoje não consigo entender como os médicos não se deram conta do que estava acontecendo. Estava tudo ali, numa tela de um tomógrafo, qualquer uma veria que que o cérebro estava sendo invadido por uma enchente de sangue.
Poderiam ter fechado aquele vaso, poderiam ter drenado o sangue, assim evitariam a hemorragia que se alastrava, evitariam o coágulo que posteriormente se forma, não haveria um hematoma e a consequente morte daquela região.
Mas nada fizeram. Tão pouco explicaram com clareza para minha mãe, ou para mim. Só a sabiam dizer que meu pai sofrera uma hemorragia, que estava em coma e que era necessário esperar para ver se o sangue seria naturalmente absorvido pelo tecido cerebral.
Quarenta e oito horas depois, eu já em São Paulo, a situação não havia mudado. Houve sim, um aumento da pressão intracraniana e era necessário a colocação de uma válvula no cérebro, ligada a um catéter que levasse aquele sangue represado embora.
Lembro tão bem que este procedimento estava sendo feito à noite e da janela do corredor do hotel em que estávamos podíamos visualizar o Hospital das Clínicas. Ficamos todos ali, rezando, esperando que nossas preces atravessassem a muralha de prédios em volta e chegassem até meu pai. Mas elas não chegaram, ficaram pelo caminho, talvez presas num daqueles engarrafamentos monstruosos que ocorriam todos os dias.
Só iríamos saber o resultado no dia seguinte, era norma do hospital não dar informações pelo telefone. Aliás, o hospital tem tantas normas que acredito que uma delas proíbe o médico de falar com a família. Jamais vi a cara do médico que operou meu pai. Lembro que se chamava Salomão, porém não me recordo o sobrenome. Ele se recusou a nos atender e em seguida viajou para os Estados Unidos.
Meu pai ficou então nas UTI neurológica, nas mãos de um residente japonês, mais frio e distante que o Polo Norte.
sábado, 13 de dezembro de 2014
RELATOS PARKINSONIANOS - 5 -- A VIDA VAI SE DESPEDINDO
Já era 1995. A doença seguia seu curso implacavelmente, porém meu pai continuava lutando. Ia ao trabalho todos os dias, dirigindo, obviamente. Naquele ano realizou o maior de seus sonhos: conhecer Israel. Quando soube da notícia ficou absolutamente incrédulo, excitado como uma criança.
Só acreditou mesmo quando suas mãos trêmulas seguraram pela primeira vez as passagens.
Ai daquele que não sonha! E ele desejava ardentemente fazer aquela viagem, conhecer a terra onde Jesus viveu. De início ele iria sozinho, mas depois concluímos que o melhor era minha mãe ir junto Fazer as mínimas atividades já lhe era profundamente difícil. Imaginem num país estranho, sem conhecer ninguém.
Extremamente comunicativo, já nos primeiros dias em Tel Aviv resolveu se aventurar sozinho pela cidade. Demorou horas para voltar para o hotel, minha mãe já estava entrando em desespero, quando ele chega tranquilo e faceiro quarto adentro. Havia conhecido um judeu, alemão, travaram uma amizade instantânea e ele acabou sendo convidado para tomar um chá na casa do novo amigo.
Voltou parecendo um judeu, com kipá na cabeça, parecia ter saído de uma sinagoga.
Certo dia resolveu tomar um banho de banheira. Não conheço as banheiras israelenses, mas pela descrição, não são como as nossas, que ficam no nível do piso. Aquela era encravada no chão, como uma piscina, com bordas e fundos arredondados. Para entrar não houve problema, mas e para sair? Com as articulações totalmente comprometidas, ficou entalado, não conseguia se levantar, pois não havia uma barra de apoio e o mármore ficara ainda mais escorregadio pela espuma do sabonete.
Minha mãe tentava de todas as formas ajudá-lo e já estava prestes a solicitar ajuda de algum funcionário do hotel, contra sua vontade, bem visto. Ele não admitia a dependência. Depois de mais de uma hora conseguiu enfim se colocar de joelhos, se agarrar na borda e minha mãe pode içá-lo, tarefa não muito fácil, pois era homem grande e pesado.
Ficaram muitos dias em Israel, onde ele se recusou terminantemente a visitar o Museu do Holo causto. Depois seguiram para o Egito. Lá ele aprontou outra. Como era um dia livre, sem nenhum compromisso com a excursão, resolveram sair meio que sem rumo. Não sabiam falar inglês, muito menos egípcio. Como fazer para comer? Avistaram um Mac Donalds, era a salvação, mas também não sabiam como pedir. Meu pai, que não era muito adepto a fastfoods não sabia que ali não se servia cerveja. Depois de muito olhar o cardápio, escolheram um sanduíche que parecia ser bom. Quando pegaram a bandeja ficaram encantados. Veio tudo numa caixinha que parecia um carrinho de brinquedo e junto, num potinho com uma massa meio avermelhada.
Olharam-se sem saber o que era aquilo, Passaram o dedo, cheiraram, provaram. Não tinha gosto de nada, mas provavelmente deveria ser algum acompanhamento típico do Egito e meu pai não contou tempo, pegou um pedaço e meteu dentro do sanduíche. Não gostou muito, achou o sabor estranho e aquilo parecia não se desmanchar na boca. Minha mãe, mais cautelosa deixou o dela de lado.
Depois de já ter comido todo aquele "tempero", um garçom, que acredito, deveria estar às gargalhadas, com muita dificuldade conseguiu lhes explicar que eles haviam pedido um lanche de criança e aquilo que meu pai comera era um brinde, uma massinha de modelar.
Até hoje, quando penso na situação, que aliás é uma coisa muito comum entre turistas, principalmente os que estão em terras muito distantes e diferentes da sua, sempre cometem gafes hilárias. Mas ao mesmo tempo em que acho graça, me dá uma tristeza só de imaginar meu pai, com as mão tremendo, arrancando nacos de massa de modelar e comendo-a.
De Israel, depois de ter visto tudo quanto sonhara conhecer, de ter caminhado pela "Via Crucis", levando nos ombros não uma cruz de madeira, mas outra cruz, a da impotência que a doença inexoravelmente trazia, eles foram para o Egito. Lá, meu pai passeou de camelo, viu as pirâmides e também o paradoxo de um Cairo dourado e a pobreza dos arredores da cidade. Foram ainda para a Itália, e lá, lógico, não deixou de ir ao Vaticano, enquanto minha mãe, não tão afeita à religião, ficou fazendo compras.
Sonho realizado, um sonho de uma vida toda, tenho certeza que ele já estava pronto, pois nunca o vi reclamar, questionar (pelo menos em voz alta) sobre o motivo de ter Parkinson, nunca deixou de fazer suas atividades.
Continuou indo a São Paulo, fazendo o tratamento e por fim decidiu, iria submeter-se à cirurgia.
Estava feliz e calmo com a decisão, nós também.
Os médicos lhe garantiram que o caso dele permitia o procedimento e ele entrou o ano de 1996 cheio de esperanças. Em ninguém passou sequer um pensamento de que poderia não dar certo. Quer dizer, até considerávamos que ele não parasse de tremer, mas ele tinha tanta convicção, tanta certeza do sucesso, que não cabia a nós tentar contrariá-lo.
Passou a ir com mais frequência a São Paulo, mas não quis operar antes dos Jogos Abertos, realizados em outubro. Seria a última vez que ele participaria de um.
Não lembro em qual cidade aconteceram os Jogos, mas sei que ele chegou num sábado e na segunda feira, nos primeiros dias de novembro eu levei os dois, meu pai e minha mãe ao aeroporto.
Foi a última vez que o vi caminhando, foi a última vez em que ele acenou para mim, a caminho do avião. Vestia uma camisa nova, verde água e suas queridas calças jeans que ele costumava chamar de "Pedro Cardim".
Dia quente, ensolarado, próprio para voar em céu de brigadeiro. Ele estava tranquilo e eu também.
Nunca fui uma mulher com veia otimista. Pelo contrário, costumava ver obstáculos em tudo, criava problemas inexistentes, mas no caso de meu pai, me culpo por não ter sido pelo menos um pouquinho cautelosa, não ter me preparado ou a ele, para uma possível tempestade. O máximo que conseguia ponderar é que talvez a cirurgia não surtisse o efeito desejado, que era o de fazer cessar os tremores
Nunca cogitei que nossas vidas seriam atingidas por um tsunami, jamais pensei no imponderável.
Hospedaram-se em um hotel próximo ao hospital e no dia seguinte ele foi internado para os exames pré-operatórios. Levou consigo alguns poucos pertences e um livro sobre Platão, onde fazia anotações, já com sua letra cambaleante e miúda, devido à micrografia, também um dos sintomas da doença.
De cabeça raspada, ficou aguardando o dia, porém a cirurgia teve que ser adiada, pois foi só na véspera que ele contou ao médico que tomava todos os dias um comprimido de ácido acetilsalicílico, um anti coagulante para prevenir problemas cardíacos.
Imediatamente o cirurgião mudou a data, preferiu esperar uns dias para não correr o risco de uma hemorragia durante o procedimento.
Assim, a operação ficou marcada para o dia dezoito de novembro, uma segunda-feira. Ele permaneceu no hospital, mas com liberdade para sair e no sábado, claro foi com minha mãe até o Mercado Público.O natal já não estava longe e ele precisava comprar bacalhau para as festas.
Dizia minha mãe que ele parecia um menino, feliz, cheio de expectativas, com um boné cobrindo a cabeça raspada. Almoçaram no Almanara, um típico e famoso restaurante árabe, onde ele se deliciou com as comidas do Oriente, que ele tanto gostava. Neste dia ele se despediu da vida, fez tudo o quanto apreciava. Foi o dia das últimas coisas.
Eu estava de férias e em Blumenau (nessa época já havia deixado de morar em Curitiba). Falei, como de costume com minha mãe, no domingo. Soube que ele estava muito calmo, ansioso, claro, pela expectativa da segunda-feira, mas penso quem em sua cabeça só passava o pensamento de que dentro em pouco ele não tremeria mais, que dali para diante ele não precisaria esconder as mãos nas costas, gesto que ele fazia sempre que estava em público. Realmente, ele nunca mais esconderia suas mãos, pois elas nunca mais se mexeriam.
Só acreditou mesmo quando suas mãos trêmulas seguraram pela primeira vez as passagens.
Ai daquele que não sonha! E ele desejava ardentemente fazer aquela viagem, conhecer a terra onde Jesus viveu. De início ele iria sozinho, mas depois concluímos que o melhor era minha mãe ir junto Fazer as mínimas atividades já lhe era profundamente difícil. Imaginem num país estranho, sem conhecer ninguém.
Extremamente comunicativo, já nos primeiros dias em Tel Aviv resolveu se aventurar sozinho pela cidade. Demorou horas para voltar para o hotel, minha mãe já estava entrando em desespero, quando ele chega tranquilo e faceiro quarto adentro. Havia conhecido um judeu, alemão, travaram uma amizade instantânea e ele acabou sendo convidado para tomar um chá na casa do novo amigo.
Voltou parecendo um judeu, com kipá na cabeça, parecia ter saído de uma sinagoga.
Certo dia resolveu tomar um banho de banheira. Não conheço as banheiras israelenses, mas pela descrição, não são como as nossas, que ficam no nível do piso. Aquela era encravada no chão, como uma piscina, com bordas e fundos arredondados. Para entrar não houve problema, mas e para sair? Com as articulações totalmente comprometidas, ficou entalado, não conseguia se levantar, pois não havia uma barra de apoio e o mármore ficara ainda mais escorregadio pela espuma do sabonete.
Minha mãe tentava de todas as formas ajudá-lo e já estava prestes a solicitar ajuda de algum funcionário do hotel, contra sua vontade, bem visto. Ele não admitia a dependência. Depois de mais de uma hora conseguiu enfim se colocar de joelhos, se agarrar na borda e minha mãe pode içá-lo, tarefa não muito fácil, pois era homem grande e pesado.
Ficaram muitos dias em Israel, onde ele se recusou terminantemente a visitar o Museu do Holo causto. Depois seguiram para o Egito. Lá ele aprontou outra. Como era um dia livre, sem nenhum compromisso com a excursão, resolveram sair meio que sem rumo. Não sabiam falar inglês, muito menos egípcio. Como fazer para comer? Avistaram um Mac Donalds, era a salvação, mas também não sabiam como pedir. Meu pai, que não era muito adepto a fastfoods não sabia que ali não se servia cerveja. Depois de muito olhar o cardápio, escolheram um sanduíche que parecia ser bom. Quando pegaram a bandeja ficaram encantados. Veio tudo numa caixinha que parecia um carrinho de brinquedo e junto, num potinho com uma massa meio avermelhada.
Olharam-se sem saber o que era aquilo, Passaram o dedo, cheiraram, provaram. Não tinha gosto de nada, mas provavelmente deveria ser algum acompanhamento típico do Egito e meu pai não contou tempo, pegou um pedaço e meteu dentro do sanduíche. Não gostou muito, achou o sabor estranho e aquilo parecia não se desmanchar na boca. Minha mãe, mais cautelosa deixou o dela de lado.
Depois de já ter comido todo aquele "tempero", um garçom, que acredito, deveria estar às gargalhadas, com muita dificuldade conseguiu lhes explicar que eles haviam pedido um lanche de criança e aquilo que meu pai comera era um brinde, uma massinha de modelar.
Até hoje, quando penso na situação, que aliás é uma coisa muito comum entre turistas, principalmente os que estão em terras muito distantes e diferentes da sua, sempre cometem gafes hilárias. Mas ao mesmo tempo em que acho graça, me dá uma tristeza só de imaginar meu pai, com as mão tremendo, arrancando nacos de massa de modelar e comendo-a.
De Israel, depois de ter visto tudo quanto sonhara conhecer, de ter caminhado pela "Via Crucis", levando nos ombros não uma cruz de madeira, mas outra cruz, a da impotência que a doença inexoravelmente trazia, eles foram para o Egito. Lá, meu pai passeou de camelo, viu as pirâmides e também o paradoxo de um Cairo dourado e a pobreza dos arredores da cidade. Foram ainda para a Itália, e lá, lógico, não deixou de ir ao Vaticano, enquanto minha mãe, não tão afeita à religião, ficou fazendo compras.
Sonho realizado, um sonho de uma vida toda, tenho certeza que ele já estava pronto, pois nunca o vi reclamar, questionar (pelo menos em voz alta) sobre o motivo de ter Parkinson, nunca deixou de fazer suas atividades.
Continuou indo a São Paulo, fazendo o tratamento e por fim decidiu, iria submeter-se à cirurgia.
Estava feliz e calmo com a decisão, nós também.
Os médicos lhe garantiram que o caso dele permitia o procedimento e ele entrou o ano de 1996 cheio de esperanças. Em ninguém passou sequer um pensamento de que poderia não dar certo. Quer dizer, até considerávamos que ele não parasse de tremer, mas ele tinha tanta convicção, tanta certeza do sucesso, que não cabia a nós tentar contrariá-lo.
Passou a ir com mais frequência a São Paulo, mas não quis operar antes dos Jogos Abertos, realizados em outubro. Seria a última vez que ele participaria de um.
Não lembro em qual cidade aconteceram os Jogos, mas sei que ele chegou num sábado e na segunda feira, nos primeiros dias de novembro eu levei os dois, meu pai e minha mãe ao aeroporto.
Foi a última vez que o vi caminhando, foi a última vez em que ele acenou para mim, a caminho do avião. Vestia uma camisa nova, verde água e suas queridas calças jeans que ele costumava chamar de "Pedro Cardim".
Dia quente, ensolarado, próprio para voar em céu de brigadeiro. Ele estava tranquilo e eu também.
Nunca fui uma mulher com veia otimista. Pelo contrário, costumava ver obstáculos em tudo, criava problemas inexistentes, mas no caso de meu pai, me culpo por não ter sido pelo menos um pouquinho cautelosa, não ter me preparado ou a ele, para uma possível tempestade. O máximo que conseguia ponderar é que talvez a cirurgia não surtisse o efeito desejado, que era o de fazer cessar os tremores
Nunca cogitei que nossas vidas seriam atingidas por um tsunami, jamais pensei no imponderável.
Hospedaram-se em um hotel próximo ao hospital e no dia seguinte ele foi internado para os exames pré-operatórios. Levou consigo alguns poucos pertences e um livro sobre Platão, onde fazia anotações, já com sua letra cambaleante e miúda, devido à micrografia, também um dos sintomas da doença.
De cabeça raspada, ficou aguardando o dia, porém a cirurgia teve que ser adiada, pois foi só na véspera que ele contou ao médico que tomava todos os dias um comprimido de ácido acetilsalicílico, um anti coagulante para prevenir problemas cardíacos.
Imediatamente o cirurgião mudou a data, preferiu esperar uns dias para não correr o risco de uma hemorragia durante o procedimento.
Assim, a operação ficou marcada para o dia dezoito de novembro, uma segunda-feira. Ele permaneceu no hospital, mas com liberdade para sair e no sábado, claro foi com minha mãe até o Mercado Público.O natal já não estava longe e ele precisava comprar bacalhau para as festas.
Dizia minha mãe que ele parecia um menino, feliz, cheio de expectativas, com um boné cobrindo a cabeça raspada. Almoçaram no Almanara, um típico e famoso restaurante árabe, onde ele se deliciou com as comidas do Oriente, que ele tanto gostava. Neste dia ele se despediu da vida, fez tudo o quanto apreciava. Foi o dia das últimas coisas.
Eu estava de férias e em Blumenau (nessa época já havia deixado de morar em Curitiba). Falei, como de costume com minha mãe, no domingo. Soube que ele estava muito calmo, ansioso, claro, pela expectativa da segunda-feira, mas penso quem em sua cabeça só passava o pensamento de que dentro em pouco ele não tremeria mais, que dali para diante ele não precisaria esconder as mãos nas costas, gesto que ele fazia sempre que estava em público. Realmente, ele nunca mais esconderia suas mãos, pois elas nunca mais se mexeriam.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
RELATOS PARKINSONIANOS - A EVOLUÇÃO
Aos poucos os tremores foram se acentuando, a mão direita começou a se fechar em concha, e ele a mantinha sempre nas costas. Mas este não era o pior sintoma. Ele começou a ter dificuldade para caminhar, para entrar e sair do carro; as pernas não lhe obedeciam, ele tinha que segurar e erguer os joelhos. Também começou a apresentar uma postura voltada mais para a frente, mais curvada.
Naquela época eu já tinha certeza do diagnóstico, mas ele, diferente de quando enfartou, se recusava a crer, a procurar um médico. Eu morava e trabalhava em Curitiba e consegui, com muito custo que ele fosse para lá, se consultar com um especialista. Apesar do médico ter tido a certeza do que se tratava só de fazer uma anamenese, ainda assim, submeteu-o a uma tomografia, que só veio a confirmar o que já sabíamos: ele realmente estava com Parkinson.
Como já sabemos, não tem cura, mas tem remédios que controlam a sintomatologia, tratamentos fisioterapêutcios e até uma cirurgia para diminuir os tremores. Por aqui não era feita, somente em São Paulo ou Cuba. Mas ele preferiu começar o tratamento medicamentoso em Blumenau mesmo. Meu pai era um homem determinado e mesmo apesar ter me dito aquela frase de "que era um homem morto", não se abateu com facilidade.
Continuou seu trabalho, participava ativamente dos Jogos Abertos, dirigia, tinha uma rotina quase que normal.
Minha mãe nunca fora uma pessoa particularmente paciente com relação a tratar de doentes, nem aos filhos ela dedicava muita atenção ou mimos, mas no caso de meu pai, devo dar a mão à palmatória: ela teve uma extrema dedicação para com ele. A doença seguia seu curso muito rapidamente, os remédios não surtiam o efeito desejado. Assim, logo chegou o ponto dele não conseguir abotoar uma camisa, pentear devidamente os cabelos, cortar um alimento. Ela tudo fazia e contava com a colaboração de uma secretária, na Fundação Municipal de Esportes que o ajudava, dando-lhe os remédios nas horas certas, ajudando-o quando viajavam para alguma competição.
Geralmente é receitado Prolopa e ele tomava, mas realmente, ela por si só não resolvia muito, então ele, que tinha um primo médico em São Paulo, que havia sido diretor por muito tempo do Hospital das Clínicas (o maior da América do Sul), resolveu procurá-lo. Lá, atendido por um neurologista, teve a medicação modificada e foi aconselhado a se submeter a uma esterotaxia (falarei mair tarde sobre isso).
Voltou Para Blumenau mais animado e claro, com seu indefectível bacalhau e suas azeitonas.
Mas os novos remédios traziam uma série de efeitos colaterais. Após tomá-los sua cabeça perdia completamente o equilíbrio. Ficava balançando de um lado para o outro, como de fosse despencar do pescoço a qualquer momento. Era horrível de ver. Levava mais ou menos uma hora para passar. Os tremores assim como a dificuldade de motricidade, também não diminuíram.
Vê-lo comer estava cada vez mais complicado.Havia a necessidade de se colocar um guardanapo no pescoço para lhe proteger a roupa, como um bebê. O caminho do garfo até a boca era como uma dança descoordenada e sopa só com ajuda de minha mãe, senão tudo ficava pelo caminho.
Também as funções intestinais ficaram comprometidas. É comum a obstipação, ou seja, a dificuldade para evacuar, porque os intestinos começam a ficar mais preguiçosos. Muitas vezes era obrigado a tomar algum laxante. Nesse período passou a dormir em outro quarto, pois cada vez que precisava se virar na cama era necessário se sentar para mudar a posição e isso acabava por acordar minha mãe.
Por fim, capitulou. Resolveu operar. Poderia ter ido para Cuba, ou operado em algum hospital particular em São Paulo, que também fazia a cirurgia, mas achou por bem ir para os Hospital das Clínicas, pois lá tinha seu primo e uma equipe considerada altamente capaz.
Sei que talvez seja maçante ler o que escrevo e que para muitos o assunto pode não ter valia, mas creiam, ninguém, ninguém mesmo está livre e penso que, quanto mais informado se está, mais condições se tem para enfrentar a doença, É triste, sim, é. Principalmente porque a tragédia se fez e devastou completamente minha família.
Naquela época eu já tinha certeza do diagnóstico, mas ele, diferente de quando enfartou, se recusava a crer, a procurar um médico. Eu morava e trabalhava em Curitiba e consegui, com muito custo que ele fosse para lá, se consultar com um especialista. Apesar do médico ter tido a certeza do que se tratava só de fazer uma anamenese, ainda assim, submeteu-o a uma tomografia, que só veio a confirmar o que já sabíamos: ele realmente estava com Parkinson.
Como já sabemos, não tem cura, mas tem remédios que controlam a sintomatologia, tratamentos fisioterapêutcios e até uma cirurgia para diminuir os tremores. Por aqui não era feita, somente em São Paulo ou Cuba. Mas ele preferiu começar o tratamento medicamentoso em Blumenau mesmo. Meu pai era um homem determinado e mesmo apesar ter me dito aquela frase de "que era um homem morto", não se abateu com facilidade.
Continuou seu trabalho, participava ativamente dos Jogos Abertos, dirigia, tinha uma rotina quase que normal.
Minha mãe nunca fora uma pessoa particularmente paciente com relação a tratar de doentes, nem aos filhos ela dedicava muita atenção ou mimos, mas no caso de meu pai, devo dar a mão à palmatória: ela teve uma extrema dedicação para com ele. A doença seguia seu curso muito rapidamente, os remédios não surtiam o efeito desejado. Assim, logo chegou o ponto dele não conseguir abotoar uma camisa, pentear devidamente os cabelos, cortar um alimento. Ela tudo fazia e contava com a colaboração de uma secretária, na Fundação Municipal de Esportes que o ajudava, dando-lhe os remédios nas horas certas, ajudando-o quando viajavam para alguma competição.
Geralmente é receitado Prolopa e ele tomava, mas realmente, ela por si só não resolvia muito, então ele, que tinha um primo médico em São Paulo, que havia sido diretor por muito tempo do Hospital das Clínicas (o maior da América do Sul), resolveu procurá-lo. Lá, atendido por um neurologista, teve a medicação modificada e foi aconselhado a se submeter a uma esterotaxia (falarei mair tarde sobre isso).
Voltou Para Blumenau mais animado e claro, com seu indefectível bacalhau e suas azeitonas.
Mas os novos remédios traziam uma série de efeitos colaterais. Após tomá-los sua cabeça perdia completamente o equilíbrio. Ficava balançando de um lado para o outro, como de fosse despencar do pescoço a qualquer momento. Era horrível de ver. Levava mais ou menos uma hora para passar. Os tremores assim como a dificuldade de motricidade, também não diminuíram.
Vê-lo comer estava cada vez mais complicado.Havia a necessidade de se colocar um guardanapo no pescoço para lhe proteger a roupa, como um bebê. O caminho do garfo até a boca era como uma dança descoordenada e sopa só com ajuda de minha mãe, senão tudo ficava pelo caminho.
Também as funções intestinais ficaram comprometidas. É comum a obstipação, ou seja, a dificuldade para evacuar, porque os intestinos começam a ficar mais preguiçosos. Muitas vezes era obrigado a tomar algum laxante. Nesse período passou a dormir em outro quarto, pois cada vez que precisava se virar na cama era necessário se sentar para mudar a posição e isso acabava por acordar minha mãe.
Por fim, capitulou. Resolveu operar. Poderia ter ido para Cuba, ou operado em algum hospital particular em São Paulo, que também fazia a cirurgia, mas achou por bem ir para os Hospital das Clínicas, pois lá tinha seu primo e uma equipe considerada altamente capaz.
Sei que talvez seja maçante ler o que escrevo e que para muitos o assunto pode não ter valia, mas creiam, ninguém, ninguém mesmo está livre e penso que, quanto mais informado se está, mais condições se tem para enfrentar a doença, É triste, sim, é. Principalmente porque a tragédia se fez e devastou completamente minha família.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
PARADA OBRIGATÓRIA
NÃO SUMI, NÃO. FOI ESSE APARELHINHO QUE PIROU. NÃO PODIA IMAGINAR QUE FICARIA TÃO DEPENDENTE, QUASE ENLOUQUECI SEM PODER ESCREVER, MAS AGORA ELE JÁ SAIU DA UTI E VOLTO AOS MEUS ESCRITOS, MAS SÓ AMANHÃ, PQ HJ ESTOU CANSADÍSSIMA.
sábado, 6 de dezembro de 2014
RELATOS PARKINSONIANOS 4 - JOÃO BÜRGER, O COMEÇO DE TUDO
Lá pelo início dos anos 1990, com meu pai recém entrando na casa dos sessenta anos, começamos a perceber uma mudança em seus movimentos.
Eu não morava com eles, estava presente apenas nos finais de semana, mas me chamou muito a atenção o tremor, ainda de forma leve que ele apresentava no braço e principalmente na mão direita.
Não era tão ostensivo que chamasse a atenção. Era mais perceptível à mesa, os talheres dançavam até chegarem com a comida em sua boca.
Passou-me pela cabeça que poderia ser Parkinson, mas ainda era um tremor muito discreto, mais semelhante à falta de coordenação que é muito comum nas pessoas mais idosas. Mas meu pai não era "velho", mal tinha se tornado um sexagenário. Mesmo já tendo se passado quase trinta anos e a expectativa de vida tenha aumentado consideravelmente, meu pai, de modo nenhum poderia ser considerado um idoso clássico.
Era um homem ativo, tinha um profundo amor pelos esportes; sua vida era dedicada aos Jogos Abertos, amava o basquete e creio que nessa época já não era mais um representante comercial que havia vivido nas estradas desde que me lembro por gente. Envolvido com o mundo esportivo, embora não praticasse nada além de um pouco de "bocha" e dominó, tinha mais uma função burocrática e foi sem falsa modéstia, uns dos maiores responsáveis pela hegemonia blumenauense nas competições
Durante muitos anos trabalhou de graça em prol dos esportes.Costumava dizer que "um atleta a mais era um drogado a menos". Tinha uma dedicação incansável e extremamente afetuosa com a atividade.
Sempre fora carismático, não havia quem não gostasse dele. Simpático, falante, apesar de pouco estudo formal, era bastante culto, lia muito e era extremamente religioso. Gostava muito de ir à missa e o fazia quase todos os dias. Certa feita, perguntaram à minha mãe se ele havia se tornado padre;Também era homem bonito.Era alto, magro,( tudo bem, já tinha uma discreta barriguinha), os cabelos sempre penteados para trás da cabeça e cuidadosamente mantidos com Trim,mas apesar disso era extremamente simples.
Um paradoxo, meu pai. Na verdade nunca pude lhe compreender totalmente.Jamais admitiu que éramos, como vou dizer sem parecer metida, ricos. Muito pelo contrário, na sua concepção, éramos pobres.Nossa casa nunca foi luxuosamente decorada, para ele uma mesa e um banquinho eram mais que suficientes. Se não fosse por minha mãe, acho que teríamos vivido em choupanas e para ele estaria bom. Contrariamente a isso, apreciava de forma intensa a boa gastronomia e nossa casa mais parecia um supermercado, aliás, lugar onde ia quase todos os dias. Sempre tivemos uma mesa farta, não só em quantidade, mas sobretudo, em qualidade. Azeites importados, queijos idem, carne? praticamente só se comia filé mignon. Imaginem que havia na nossa cozinha, duas geladeira sempre lotadas, mais um freezer abarrotado, fora armários e uma despensa atulhada. Muitas vezes minha mãe tinha que jogar fora os alimentos, pois eram tantos e assim impossíveis de serem consumidos, muitos passavam do prazo de validade.
Costumava ir sempre a São Paulo e lá, seu lugar preferido era o famoso Mercado Municipal, onde tinha um fornecedor exclusivo do melhor bacalhau, por sinal, um de seus pratos preferidos e muito bem preparado pela minha mãe.
Ao mesmo tempo em que vivíamos nessa Babel gastronômica, e astronômica, pois nunca regateou ou reclamou quanto aos gastos exagerados que fazia com comida, não era homem de outros luxos, e nos ressentíamos pois raramente viajávamos, segundo ele, não tinha dinheiro para isso.
Mas nada faltava para nós: boas escolas, boas roupas, belas jóias para minha mãe, empregadas, motorista, temporada de mais de dois meses na nossa casa de praia, nas férias de verão, bons carros. Era viciado em Opala, um carrão para a época. Já para nós, os filhos, sempre Fusca e fazia questão que logo ao fazermos dezoito anos, tirássemos carteira de habilitação.
Também apreciava bons vinhos, mas não desdenhava de um de um vindo de garrafão, daqueles de se fazer quentão no inverno. E bons uisques.
Aos domingos de manhã, gostava de se sentar na varanda ou em sua poltrona para assistir programas esportivos, acompanhado por por algum aperitivo e acepipes como queijos ou azeitonas gregas.
Embora nunca tenha ocupado algum cargo público (só quando já aposentado assumiu a diretoria de Secretaria Municipal de Esportes), era um homem "público" Todos, em Blumenau o conheciam, era impossível sair com ele, parava a cada instante para falar com alguém, parecia ser um político e muito insistiram para que se candidatasse ao cargo de prefeito, mas sempre declinou do convite. Não nascera para a política, pelo menos, não a oficial. Sua política era muito particular e jamais ele se veria envolvido em maracutaias para tirar proveitos financeiros. Era por demais honesto.
Tinha gosto musical eclético, mas foi com ele que aprendi a apreciar música clássica, ópera e balé.
Ao mesmo tempo, era fã do Gaúcho da Fronteira e hoje não posso ouvir o "Canto Alegretense" sem me deixar levar pela saudade.
Não costumava ir ao cinema. Quando mais moço sim, depois do advento da televisão, que aliás fomos uma das primeiras famílias a ter uma, e sobretudo com a chegada do vídeo cassete, passou assistir filmes em casa. Amava Charles Chaplin e seu filme preferido era Derzu Uzala Assistiu-o diversas vezes e sempre se comovia.
Não me lembro de jamais ter visto meu pai bêbado, às vezes em alguma festividade, passava um pouquinho dos limites, mas nunca deu vexame, pelo contrário, geralmente se tornava hilário.
Fumou até enfartar aos cinquenta e poucos anos, precocemente. Enfarto severo, raro, sem a dor comum que o precede. Enfartou de emoção, dentro de um ginásio de esportes numa final de um jogo de basquete nos Jogos Abertos de Itajaí, em 1985.
Foi operado em São Paulo e levou a sério as recomendações médicas: nunca mais colocou um cigarro na boca, caminhava todos os dias, sua alimentação tornou-se mais regrada. Era consumidor compulsivo de azeite de oliva, que hoje sabe-se faz muito bem.
Depois que voltou de São Paulo, com uma dieta específica no bolso, passou a consumir músculo; era a carne recomendada pela nutricionista. Minha mãe não gostava muito de prepará-la e nem nós de comê-la, mas durante um bom tempo ela fez parte do nosso cardápio, até que um dia, nunca se soube a razão, ele chegou para o almoço, olhou para a travessa da carne e mandou que fosse retirada da mesa. Recusou-se terminantemente a comer e desde então proibiu que fosse consumida lá em casa.
Por mais que perguntássemos qual o motivo da repulsa, jamais ele nos disse. Graças aos céus, voltamos ao filé mignon.
Eu não morava com eles, estava presente apenas nos finais de semana, mas me chamou muito a atenção o tremor, ainda de forma leve que ele apresentava no braço e principalmente na mão direita.
Não era tão ostensivo que chamasse a atenção. Era mais perceptível à mesa, os talheres dançavam até chegarem com a comida em sua boca.
Passou-me pela cabeça que poderia ser Parkinson, mas ainda era um tremor muito discreto, mais semelhante à falta de coordenação que é muito comum nas pessoas mais idosas. Mas meu pai não era "velho", mal tinha se tornado um sexagenário. Mesmo já tendo se passado quase trinta anos e a expectativa de vida tenha aumentado consideravelmente, meu pai, de modo nenhum poderia ser considerado um idoso clássico.
Era um homem ativo, tinha um profundo amor pelos esportes; sua vida era dedicada aos Jogos Abertos, amava o basquete e creio que nessa época já não era mais um representante comercial que havia vivido nas estradas desde que me lembro por gente. Envolvido com o mundo esportivo, embora não praticasse nada além de um pouco de "bocha" e dominó, tinha mais uma função burocrática e foi sem falsa modéstia, uns dos maiores responsáveis pela hegemonia blumenauense nas competições
Durante muitos anos trabalhou de graça em prol dos esportes.Costumava dizer que "um atleta a mais era um drogado a menos". Tinha uma dedicação incansável e extremamente afetuosa com a atividade.
Sempre fora carismático, não havia quem não gostasse dele. Simpático, falante, apesar de pouco estudo formal, era bastante culto, lia muito e era extremamente religioso. Gostava muito de ir à missa e o fazia quase todos os dias. Certa feita, perguntaram à minha mãe se ele havia se tornado padre;Também era homem bonito.Era alto, magro,( tudo bem, já tinha uma discreta barriguinha), os cabelos sempre penteados para trás da cabeça e cuidadosamente mantidos com Trim,mas apesar disso era extremamente simples.
Um paradoxo, meu pai. Na verdade nunca pude lhe compreender totalmente.Jamais admitiu que éramos, como vou dizer sem parecer metida, ricos. Muito pelo contrário, na sua concepção, éramos pobres.Nossa casa nunca foi luxuosamente decorada, para ele uma mesa e um banquinho eram mais que suficientes. Se não fosse por minha mãe, acho que teríamos vivido em choupanas e para ele estaria bom. Contrariamente a isso, apreciava de forma intensa a boa gastronomia e nossa casa mais parecia um supermercado, aliás, lugar onde ia quase todos os dias. Sempre tivemos uma mesa farta, não só em quantidade, mas sobretudo, em qualidade. Azeites importados, queijos idem, carne? praticamente só se comia filé mignon. Imaginem que havia na nossa cozinha, duas geladeira sempre lotadas, mais um freezer abarrotado, fora armários e uma despensa atulhada. Muitas vezes minha mãe tinha que jogar fora os alimentos, pois eram tantos e assim impossíveis de serem consumidos, muitos passavam do prazo de validade.
Costumava ir sempre a São Paulo e lá, seu lugar preferido era o famoso Mercado Municipal, onde tinha um fornecedor exclusivo do melhor bacalhau, por sinal, um de seus pratos preferidos e muito bem preparado pela minha mãe.
Ao mesmo tempo em que vivíamos nessa Babel gastronômica, e astronômica, pois nunca regateou ou reclamou quanto aos gastos exagerados que fazia com comida, não era homem de outros luxos, e nos ressentíamos pois raramente viajávamos, segundo ele, não tinha dinheiro para isso.
Mas nada faltava para nós: boas escolas, boas roupas, belas jóias para minha mãe, empregadas, motorista, temporada de mais de dois meses na nossa casa de praia, nas férias de verão, bons carros. Era viciado em Opala, um carrão para a época. Já para nós, os filhos, sempre Fusca e fazia questão que logo ao fazermos dezoito anos, tirássemos carteira de habilitação.
Também apreciava bons vinhos, mas não desdenhava de um de um vindo de garrafão, daqueles de se fazer quentão no inverno. E bons uisques.
Aos domingos de manhã, gostava de se sentar na varanda ou em sua poltrona para assistir programas esportivos, acompanhado por por algum aperitivo e acepipes como queijos ou azeitonas gregas.
Embora nunca tenha ocupado algum cargo público (só quando já aposentado assumiu a diretoria de Secretaria Municipal de Esportes), era um homem "público" Todos, em Blumenau o conheciam, era impossível sair com ele, parava a cada instante para falar com alguém, parecia ser um político e muito insistiram para que se candidatasse ao cargo de prefeito, mas sempre declinou do convite. Não nascera para a política, pelo menos, não a oficial. Sua política era muito particular e jamais ele se veria envolvido em maracutaias para tirar proveitos financeiros. Era por demais honesto.
Tinha gosto musical eclético, mas foi com ele que aprendi a apreciar música clássica, ópera e balé.
Ao mesmo tempo, era fã do Gaúcho da Fronteira e hoje não posso ouvir o "Canto Alegretense" sem me deixar levar pela saudade.
Não costumava ir ao cinema. Quando mais moço sim, depois do advento da televisão, que aliás fomos uma das primeiras famílias a ter uma, e sobretudo com a chegada do vídeo cassete, passou assistir filmes em casa. Amava Charles Chaplin e seu filme preferido era Derzu Uzala Assistiu-o diversas vezes e sempre se comovia.
Não me lembro de jamais ter visto meu pai bêbado, às vezes em alguma festividade, passava um pouquinho dos limites, mas nunca deu vexame, pelo contrário, geralmente se tornava hilário.
Fumou até enfartar aos cinquenta e poucos anos, precocemente. Enfarto severo, raro, sem a dor comum que o precede. Enfartou de emoção, dentro de um ginásio de esportes numa final de um jogo de basquete nos Jogos Abertos de Itajaí, em 1985.
Foi operado em São Paulo e levou a sério as recomendações médicas: nunca mais colocou um cigarro na boca, caminhava todos os dias, sua alimentação tornou-se mais regrada. Era consumidor compulsivo de azeite de oliva, que hoje sabe-se faz muito bem.
Depois que voltou de São Paulo, com uma dieta específica no bolso, passou a consumir músculo; era a carne recomendada pela nutricionista. Minha mãe não gostava muito de prepará-la e nem nós de comê-la, mas durante um bom tempo ela fez parte do nosso cardápio, até que um dia, nunca se soube a razão, ele chegou para o almoço, olhou para a travessa da carne e mandou que fosse retirada da mesa. Recusou-se terminantemente a comer e desde então proibiu que fosse consumida lá em casa.
Por mais que perguntássemos qual o motivo da repulsa, jamais ele nos disse. Graças aos céus, voltamos ao filé mignon.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2014
RELATOS PARKINSONIANOS 3 - O CÉREBRO É UM SENHOR DE ENGENHO
Explico o título: no tempo do Brasil colônia, quando a escravidão era considerado algo "normal", os maiores donos de escravos eram os chamados "senhores de engenho" os fazendeiros, e comumente eles eram terríveis para quem estava sob seu jugo. Era comum, não só nas fazendas, mas em todos os lugares, existirem pelourinhos, que nada mais eram do que postes cravados no chão, onde o escravo era amarrado e ali era açoitado muitas vezes até a morte. Havia toda espécie de tortura e ai do escravo que não obedecesse e em muitos casos, nem era preciso o pobre cometer qualquer deslize para ser penalizado. Ele poderia ser apenas uma válvula de escape para o seu senhor desferir, por prazer, uma ira qualquer.
Assim sou eu: o corpo inteiro me pertence, todas as células são minhas escravas e posso fazer com elas o que em me aprouver. Quem pode manda e quem tem juízo, obedece.
É claro que ocorrem rebeliões; muitas células fogem e formam quilombos, outras deixam-se morrer por não suportar a escravidão.
A minha "fazenda", ou a caixa (melhor dizendo, a bola, pois sou redonda) não é grande, como voces já sabem, porém é feita de osso e embora pareça muito resistente, na verdade não é. Está sujeita a ataques externos que podem causar grandes ferimentos, além de ter que lidar com células revoltadas que podem provocar doenças mortais ou deixar sequelas terríveis. No fundo, sou um ser muito delicado.
Não sou sempre mau. Uma parte de mim é muito boa, dá ao sujeito todas as condições de ter uma vida ótima. Nem sempre sou um carrasco, mas confesso, sou voluntarioso e o que é pior, não tenho nenhuma chefia a quem dar satisfações. Só quem pode comigo é Deus, e olhe lá.
Muitos dos estragos que eu provoco com a minha tirania, ainda têm causas bem obscuras. É o caso por exemplo, de doenças como o Alzheimer, como a Ela, como o Parkinson, entre centenas de outras.
Claro que existem alguns fatores predisponentes, mas em geral, a causa real ainda é desconhecida.
Como já disse antes, as células se reúnem revoltadas, fazem um motim e decidem fazer greve; simplesmente param de trabalhar. Lógico que existem sindicatos, formados por médicos, os chamados neurologistas e em algumas ocasiões eles conseguem bons acordos trabalhistas, porém em outros, não há negociação, nem a força de um chicote que faça os neurônios voltarem a ativa. Eles preferem morrer a tornar a me obedecer. É o caso, por exemplo, das doenças que citei acima.
Posso mandá-las para o pelourinho, nada adianta, elas simplesmente se deixam morrer e deixam ao abandono a senzala em que moravam. Esses lugares ficam vazios, perdem a serventia, pois não há mais ninguém para fazê-los funcionar.
É o que acontece com muito incautos. Existe uma área dentro de de mim,que é muito elegante. Ela segue à risca a regra de que toda mulher necessita de um "pretinho básico" em seu guarda roupa para ser chic. Pois então, vejam voces como eu posso se bondoso: eu criei um espaço que denominei como "substância negra". Não dei apenas um vestido, dei um armário inteiro e também conferi aos seus moradores o poder de comandar toda a parte de motricidade dos indivíduos, desde que eles produzissem um produto chamado "dopamina". Fui tão benevolente que deixei o trabalho pesado, ou seja, fazer com que o corpo pudesse se movimentar (sempre sob o meu comando, é óbvio) para a dona "dopa". Aos neurônios cabia apenas a função de procriá-las, coisa pouca, nem se pode comparar a uma gestação, os neurônios não têm enjôos, sono fora de hora e muito menos ficam barrigudos.
Tarefinha moleza. Mas a ingratidão atinge a todos, indistintamente. O fato é que as células da substância negra resolvem fazer greve, provavelmente de fome, pois começam a se degenerar e a morrer. Na verdade são umas egoístas, pois não pensam que com isso vão prejudicar e muito, a pessoa que lhes dá abrigo.
Creio tratar-se de um suicídio coletivo, lento e gradual. Penso que entre elas deve haver alguém que deseja ser um Tim Jones, aquele que tinha uma seita, nos Estados Unidos e que levou 900 pessoas a se matarem, em 1978, lembram?
Pois é, a medida em que vão morrendo vão afetando uma parte do corpo, que deixa de funcionar a contento.
De início atingem geralmente a parte motora do corpo, mas com o passar do tempo pode até levar à perda de memória e à demência e por fim, à morte porque até os músculos responsáveis pela respiração decretam falência.
Existem hipóteses para esse ato tresloucado, como por exemplo, a hereditariedade (embora segundo estudos, não seja ela a grande responsável), influências do meio ambiente, exposição a produtos tóxicos, como inseticidas ou herbicidas.
Claro que há um batalhão de choque, me atreveria a chamá-lo de BOPE, comandado pelo capitão Nascimento que luta bravamente para encontrar a cura ou pelo menos terapias que retardem a sua progressão, mas ainda falta muito caminho para ser percorrido. Voces já sabem, sou um ser repleto de mistérios, de incógnitas, não permito que invadam tão facilmente a minha privacidade. Então ainda há muito a ser estudado.
Já se sabe por exemplo que essa doença, que também pode ser chamada de "mal" ou "paralisia agitante" e foi descrita pela primeira vez em 1817 por James Parkinson, daí o seu nome. Eu heim? Eu é que não queria uma homenagem dessas!
Não existe prevenção, portanto, caros colegas, todos estamos sujeitos a desenvolvê-la.
Num conceito mais digamos, bonito, dir-se-ia que: " a doença de Parkinson é uma disfunção dos neurônios secretores de dopamina nos gânglios da base do cérebro, que controlam e ajustam os comandos conscientes vindos do córtex cerebral. Não somente os neurônios dopaminérgicos estão envolvidos no processo, mas também outros que produzem a serotonina (por isso é muito comum a depressão), a noradrenalina e a acetilcolina".
Como todo conceito acadêmico ou científico é meio complicado de se entender, por isso, traduzindo em miúdos, o fato de não haver mais dopamina faz com que o indivíduo perca a coordenação motora, apresente tremores, tenha dificuldade para andar, apresente rigidez muscular, o que compromete também as articulações e aos poucos, torna o indivíduo incapacitado para realizar as atividades mais simples, como amarrar um sapato, por exemplo.
Óbvio que a criatura entra num processo depressivo imenso. Muitos perdem completamente a vontade de viver.
Lembro que meu pai, quando teve o diagnóstico confirmado, olhou para mim e disse: "filha, sou um homem morto"! Mas isso não ocorreu de pronto. Ele foi um guerreiro, não se entregou, não deixou de trabalhar e até mesmo de dirigir, o que era na realidade, um perigo. Minha mãe se recusava a andar com ele de carro. Mesmo quando ele despencou de um morro e ficou preso entre as árvores, ainda assim ele recusou veementemente a ajuda de um motorista.
Tenho certeza do amor de meu pai pelos filhos, assim com creio piamente que ele não desejava esse destino para nenhum de nós, mas infelizmente, na roleta russa que é a vida, foi em mim que o revólver disparou sua única bala.
Assim sou eu: o corpo inteiro me pertence, todas as células são minhas escravas e posso fazer com elas o que em me aprouver. Quem pode manda e quem tem juízo, obedece.
É claro que ocorrem rebeliões; muitas células fogem e formam quilombos, outras deixam-se morrer por não suportar a escravidão.
A minha "fazenda", ou a caixa (melhor dizendo, a bola, pois sou redonda) não é grande, como voces já sabem, porém é feita de osso e embora pareça muito resistente, na verdade não é. Está sujeita a ataques externos que podem causar grandes ferimentos, além de ter que lidar com células revoltadas que podem provocar doenças mortais ou deixar sequelas terríveis. No fundo, sou um ser muito delicado.
Não sou sempre mau. Uma parte de mim é muito boa, dá ao sujeito todas as condições de ter uma vida ótima. Nem sempre sou um carrasco, mas confesso, sou voluntarioso e o que é pior, não tenho nenhuma chefia a quem dar satisfações. Só quem pode comigo é Deus, e olhe lá.
Muitos dos estragos que eu provoco com a minha tirania, ainda têm causas bem obscuras. É o caso por exemplo, de doenças como o Alzheimer, como a Ela, como o Parkinson, entre centenas de outras.
Claro que existem alguns fatores predisponentes, mas em geral, a causa real ainda é desconhecida.
Como já disse antes, as células se reúnem revoltadas, fazem um motim e decidem fazer greve; simplesmente param de trabalhar. Lógico que existem sindicatos, formados por médicos, os chamados neurologistas e em algumas ocasiões eles conseguem bons acordos trabalhistas, porém em outros, não há negociação, nem a força de um chicote que faça os neurônios voltarem a ativa. Eles preferem morrer a tornar a me obedecer. É o caso, por exemplo, das doenças que citei acima.
Posso mandá-las para o pelourinho, nada adianta, elas simplesmente se deixam morrer e deixam ao abandono a senzala em que moravam. Esses lugares ficam vazios, perdem a serventia, pois não há mais ninguém para fazê-los funcionar.
É o que acontece com muito incautos. Existe uma área dentro de de mim,que é muito elegante. Ela segue à risca a regra de que toda mulher necessita de um "pretinho básico" em seu guarda roupa para ser chic. Pois então, vejam voces como eu posso se bondoso: eu criei um espaço que denominei como "substância negra". Não dei apenas um vestido, dei um armário inteiro e também conferi aos seus moradores o poder de comandar toda a parte de motricidade dos indivíduos, desde que eles produzissem um produto chamado "dopamina". Fui tão benevolente que deixei o trabalho pesado, ou seja, fazer com que o corpo pudesse se movimentar (sempre sob o meu comando, é óbvio) para a dona "dopa". Aos neurônios cabia apenas a função de procriá-las, coisa pouca, nem se pode comparar a uma gestação, os neurônios não têm enjôos, sono fora de hora e muito menos ficam barrigudos.
Tarefinha moleza. Mas a ingratidão atinge a todos, indistintamente. O fato é que as células da substância negra resolvem fazer greve, provavelmente de fome, pois começam a se degenerar e a morrer. Na verdade são umas egoístas, pois não pensam que com isso vão prejudicar e muito, a pessoa que lhes dá abrigo.
Creio tratar-se de um suicídio coletivo, lento e gradual. Penso que entre elas deve haver alguém que deseja ser um Tim Jones, aquele que tinha uma seita, nos Estados Unidos e que levou 900 pessoas a se matarem, em 1978, lembram?
Pois é, a medida em que vão morrendo vão afetando uma parte do corpo, que deixa de funcionar a contento.
De início atingem geralmente a parte motora do corpo, mas com o passar do tempo pode até levar à perda de memória e à demência e por fim, à morte porque até os músculos responsáveis pela respiração decretam falência.
Existem hipóteses para esse ato tresloucado, como por exemplo, a hereditariedade (embora segundo estudos, não seja ela a grande responsável), influências do meio ambiente, exposição a produtos tóxicos, como inseticidas ou herbicidas.
Claro que há um batalhão de choque, me atreveria a chamá-lo de BOPE, comandado pelo capitão Nascimento que luta bravamente para encontrar a cura ou pelo menos terapias que retardem a sua progressão, mas ainda falta muito caminho para ser percorrido. Voces já sabem, sou um ser repleto de mistérios, de incógnitas, não permito que invadam tão facilmente a minha privacidade. Então ainda há muito a ser estudado.
Já se sabe por exemplo que essa doença, que também pode ser chamada de "mal" ou "paralisia agitante" e foi descrita pela primeira vez em 1817 por James Parkinson, daí o seu nome. Eu heim? Eu é que não queria uma homenagem dessas!
Não existe prevenção, portanto, caros colegas, todos estamos sujeitos a desenvolvê-la.
Num conceito mais digamos, bonito, dir-se-ia que: " a doença de Parkinson é uma disfunção dos neurônios secretores de dopamina nos gânglios da base do cérebro, que controlam e ajustam os comandos conscientes vindos do córtex cerebral. Não somente os neurônios dopaminérgicos estão envolvidos no processo, mas também outros que produzem a serotonina (por isso é muito comum a depressão), a noradrenalina e a acetilcolina".
Como todo conceito acadêmico ou científico é meio complicado de se entender, por isso, traduzindo em miúdos, o fato de não haver mais dopamina faz com que o indivíduo perca a coordenação motora, apresente tremores, tenha dificuldade para andar, apresente rigidez muscular, o que compromete também as articulações e aos poucos, torna o indivíduo incapacitado para realizar as atividades mais simples, como amarrar um sapato, por exemplo.
Óbvio que a criatura entra num processo depressivo imenso. Muitos perdem completamente a vontade de viver.
Lembro que meu pai, quando teve o diagnóstico confirmado, olhou para mim e disse: "filha, sou um homem morto"! Mas isso não ocorreu de pronto. Ele foi um guerreiro, não se entregou, não deixou de trabalhar e até mesmo de dirigir, o que era na realidade, um perigo. Minha mãe se recusava a andar com ele de carro. Mesmo quando ele despencou de um morro e ficou preso entre as árvores, ainda assim ele recusou veementemente a ajuda de um motorista.
Tenho certeza do amor de meu pai pelos filhos, assim com creio piamente que ele não desejava esse destino para nenhum de nós, mas infelizmente, na roleta russa que é a vida, foi em mim que o revólver disparou sua única bala.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
RELATOS PARKINSONIANOS 2- MUITO PRAZER! EU SOU O CÉREBRO
Pode haver situação mais desagradável do que você ir a um evento, não conhecer ninguém e também não encontrar uma boa alma disposta a lhe apresentar aos outros convidados?
Fica-se rodando pelo ambiente, com cara de paisagem, procurando ocupar as mãos com algum salgadinho ou uma bebida. É meu amigo, você está como realmente deve se sentir um peixe fora d'água.
Portanto, não posso começar sem fazer as devidas apresentações.
"Olá, eu sou o cérebro'! Esse mesmo, aí da foto. Não, não sou bonito, pareço uma noz. com a diferença que noz é uma semente gostosa de se comer, já o meu sabor, sei lá, nunca conheci ninguém que me tenha comido
.
Até que assim, passado por um fotoshop tenho lá meus encantos!
Sou um ser solitário. Moro sozinho dentro de uma casa óssea, chamada de caixa craniana.
Não me misturo como outros colegas que formam o corpo humano; não gosto de vizinhança, de viver em comunidade como o aparelho digestivo, por exemplo. Não faço parte do programa Minha Casa, Minha Vida.
Sou elitizado, moro no topo, encastelado e me desculpem a falta de modéstia, sou o rei da cocada preta. Sim meu amigo, sou seu dono, sou eu quem mando em você e não adianta reclamar nem para o Papa.
Outra característica que acho, me confere um certo charme, é que sou muito enigmático, tenho um jeito de ser muito complexo e podem até me fatiar como bifes para tentar descobrir como sou na intimidade, mas o certo é que até hoje, apesar de todos os avanços da neurociência, ainda falta muito para que me conheçam de verdade.
Já os outros órgãos, coitadinhos! Já se sabe quase tudo ou realmente tudo sobre eles. Culpa exclusivamente deles, que se mostram, que permitem que façam fofocas, invadam suas privacidades.
Eu não. Comigo não, jacaré! Sou misterioso e gosto de manter esse ar de grande diva.
Não sou grande, diante de um intestino, não passo de uma pulga; sou apenas 2% do corpo humano, peso em média 1,4 kg nos homens e 1,2 kg nas moçoilas. Mas não se animem com isso, prezados cavalheiros. A diferença não interfere no poder de cognição, mas sim está relacionada ao tamanho corporal.
Embora não seja muito avantajado, sou feito de mais de 100 bilhões de células, que se chamam neurônios e são como formigas, cada qual com suas funções.
Como também não poderia deixar de ser. os neurônios não têm o mesmo formato bobo das outras células. Eles parecem estrelas, que se ligam umas às outras pelas sinapses, que na verdade agem como informantes. A cada comando meu as sinapses tratam de comunicar ao órgão interessado.
É verdade que não sou vizinho de ninguém, mas minha casa é repartida em diversos compartimentos e em cada um mora um grupo de habitantes que são responsáveis pelas mais diversas atividades, inclusive as sentimentais.
Pobre coração, tão cantado em verso e prosa, lhe atribuem até o poder do amor! Grande mentira, até a possibilidade de amar passa pelo meu aval. Portanto coração, fique vermelho de vergonha, não seja o que você absolutamente não é. Você não passa de uma bomba que distribui sangue e dizer que você é o grande responsável pela vida é outro de seus embustes.
Meu caro, não desmereço seu trabalho, mas um sujeito só morre de verdade quando EU determino a hora e desligo a energia. Você pode até parar de batucar, mas isso não significa que a escola de samba já percorreu o sambódromo. Com ajuda de aparelhinhos, você pode reiniciar o samba. Agora, quando eu paro, aí meu bem, chegou realmente o momento de encontrar São Pedro.
Conhecem aquela máxima, "decifra-me ou te devoro"? Ainda bem que não me decifraram por completo, mas vou contar um segredo: em mim convivem anjos e demônios e também uns camaradas que não sei bem porquê estão morando comigo. Nem eu mesmo consigo compreendê-los. Por vezes tomam atitudes que eu jamais pensei que tomaria.
É meus amigos, contei um pouquinho sobre mim, mas só um bocadinho, tudo de uma vez seria na verdade um tratado de anatomia e fisiologia. Aos poucos, em doses homeopáticas eu vou me abrindo, mostrando algumas de minhas "artes", sim, porque sou danado, faço coisas que até Deus duvida.
Por isso, não saiam daí não. Tem muita história pela frente.
Fica-se rodando pelo ambiente, com cara de paisagem, procurando ocupar as mãos com algum salgadinho ou uma bebida. É meu amigo, você está como realmente deve se sentir um peixe fora d'água.
Portanto, não posso começar sem fazer as devidas apresentações.
"Olá, eu sou o cérebro'! Esse mesmo, aí da foto. Não, não sou bonito, pareço uma noz. com a diferença que noz é uma semente gostosa de se comer, já o meu sabor, sei lá, nunca conheci ninguém que me tenha comido
Até que assim, passado por um fotoshop tenho lá meus encantos!
Sou um ser solitário. Moro sozinho dentro de uma casa óssea, chamada de caixa craniana.
Não me misturo como outros colegas que formam o corpo humano; não gosto de vizinhança, de viver em comunidade como o aparelho digestivo, por exemplo. Não faço parte do programa Minha Casa, Minha Vida.
Sou elitizado, moro no topo, encastelado e me desculpem a falta de modéstia, sou o rei da cocada preta. Sim meu amigo, sou seu dono, sou eu quem mando em você e não adianta reclamar nem para o Papa.
Outra característica que acho, me confere um certo charme, é que sou muito enigmático, tenho um jeito de ser muito complexo e podem até me fatiar como bifes para tentar descobrir como sou na intimidade, mas o certo é que até hoje, apesar de todos os avanços da neurociência, ainda falta muito para que me conheçam de verdade.
Já os outros órgãos, coitadinhos! Já se sabe quase tudo ou realmente tudo sobre eles. Culpa exclusivamente deles, que se mostram, que permitem que façam fofocas, invadam suas privacidades.
Eu não. Comigo não, jacaré! Sou misterioso e gosto de manter esse ar de grande diva.
Não sou grande, diante de um intestino, não passo de uma pulga; sou apenas 2% do corpo humano, peso em média 1,4 kg nos homens e 1,2 kg nas moçoilas. Mas não se animem com isso, prezados cavalheiros. A diferença não interfere no poder de cognição, mas sim está relacionada ao tamanho corporal.
Embora não seja muito avantajado, sou feito de mais de 100 bilhões de células, que se chamam neurônios e são como formigas, cada qual com suas funções.
Como também não poderia deixar de ser. os neurônios não têm o mesmo formato bobo das outras células. Eles parecem estrelas, que se ligam umas às outras pelas sinapses, que na verdade agem como informantes. A cada comando meu as sinapses tratam de comunicar ao órgão interessado.
É verdade que não sou vizinho de ninguém, mas minha casa é repartida em diversos compartimentos e em cada um mora um grupo de habitantes que são responsáveis pelas mais diversas atividades, inclusive as sentimentais.
Pobre coração, tão cantado em verso e prosa, lhe atribuem até o poder do amor! Grande mentira, até a possibilidade de amar passa pelo meu aval. Portanto coração, fique vermelho de vergonha, não seja o que você absolutamente não é. Você não passa de uma bomba que distribui sangue e dizer que você é o grande responsável pela vida é outro de seus embustes.
Meu caro, não desmereço seu trabalho, mas um sujeito só morre de verdade quando EU determino a hora e desligo a energia. Você pode até parar de batucar, mas isso não significa que a escola de samba já percorreu o sambódromo. Com ajuda de aparelhinhos, você pode reiniciar o samba. Agora, quando eu paro, aí meu bem, chegou realmente o momento de encontrar São Pedro.
Conhecem aquela máxima, "decifra-me ou te devoro"? Ainda bem que não me decifraram por completo, mas vou contar um segredo: em mim convivem anjos e demônios e também uns camaradas que não sei bem porquê estão morando comigo. Nem eu mesmo consigo compreendê-los. Por vezes tomam atitudes que eu jamais pensei que tomaria.
É meus amigos, contei um pouquinho sobre mim, mas só um bocadinho, tudo de uma vez seria na verdade um tratado de anatomia e fisiologia. Aos poucos, em doses homeopáticas eu vou me abrindo, mostrando algumas de minhas "artes", sim, porque sou danado, faço coisas que até Deus duvida.
Por isso, não saiam daí não. Tem muita história pela frente.
RELATOS PARKINSONIANOS 1
É bem provável que voces, pensem que "ah! que ideia estapafúrdia da Ana! Leu um livro e já quer fazer algo parecido!".
Não é assim. Há muito, desde que me descobri parkinsoniana tive vontade de escrever sobre o fato, mas por razões muito íntimas, só quis repartir com pessoas que me fossem muito próximas o que estava acontecendo comigo. Já me bastava a desastrosa experiência de um dia ter exposto aqui as minúcias da minha vida.
Apesar da repercussão que causou, aprendi a duras penas que blogs não são confessionários, nem voces são padres ,muito menos Deus para me julgar e condenar. Mas eu mereci. Aprendi que aqui compartilha-se ideias, valores, experiências também, porém de forma mais cautelosa.
Por isso, fui adiando. Não precisava que o "mundo" soubesse o que estava acontecendo comigo.
Para as pessoas com as quais convivo não era preciso nem muita explicação, os sintomas são extremamente visíveis e não dá para disfarçar.
Mas lá bem no fundinho de mim mesma, uma vozinha não se calava. Ela me dizia: escreva, escreva, escreva! Há tanto para dividir e outro tanto para ensinar, sim ensinar, pois só depois de diagnosticada é que fui informada de todos os direitos que a condição me garante. Tenho certeza, muitos pacientes não têm sequer a ideia correta, nem sobre a doença, tratamentos e benefícios que nos são garantidos por lei. E sobretudo, como ajudar a família de um portador a conviver com ele.
A primeira e talvez maior inverdade sobre a Doença de Parkinson é que "NÃO VAMOS MORRER POR CAUSA DELA"!!! Podemos sim, ter um viver um pouco mais complicado, mas dá para levar, sobretudo se você tiver alguém que divida com com real amor e dedicação o seu dia-a-dia mais atrapalhado. Sim, porque se você não tiver um familiar, pode ser um amigo, ou um cuidador, você pode acabar fazendo bobagens, pode cair, não conseguir realizar determinadas atividades e é aí que mora o perigo.
Mas mesmo tendo essa consciência, receava que o ato de compartilhar poderia ser encarado de uma forma errada, pode ser visto por um viés maldoso, como bem sei, pode ocorrer.
Tinha o apoio fundamental das duas pessoas que me são mais caras: minha filha e meu marido.
O que faltava? Realmente não sei. Até ler o livro que já mencionei no outro post. Achei que sim, era a hora. Fernando me impulsionou, me fez engatar a primeira e começar a viagem.
Que fique bem claro, não vou fazer destes escritos um rosário de lamentações, tão pouco será um tratado acadêmico sobre a patologia. Também irei tentar ao máximo evitar reviver a história de meu pai, pois claramente, essa herança herdei dele.
Aqui voces encontrarão um pouquinho de tudo e até darão algumas risadas, mas sobretudo, aprenderão como podemos ser felizes, mesmo sem conseguir abotoar uma blusa ou se equilibrar em cima de um bom salto alto.
Portanto, caros amigos, daqui para frente convido-os a dividir comigo o que acontece quando alguém se descobre parkinsoniano. Faço um convite também, para aqueles que queiram ter suas experiências relatadas. Voces PODEM e DEVEM me fazer um feedback. Nada é mais importante que a INFORMAÇÃO, A TROCA DE SABERES.
O que voces me escreverem, transcreverei para cá, anonimamente se voces assim o preferirem.
Mas acredito que essa troca é fundamental. Quanto mais desmistificarmos a doença, mais fácil será enfrentá-la. Saberemos que não estamos sós, que não somos únicos, não queremos e não devemos nos ver como vítimas, muito menos como seres que adoecem por um castigo divino.
Somos muitos. Descobri quem em cada cem mil pessoas, entre sessenta e cento e oitenta são portadores, principalmente os homens e com mais de sessenta anos. Mas os jovens também não estão imunes. Há um jovem inglês que foi diagnosticado aos dezenove anos. É mais raro, mas ocorre.
Quando contei para minha filha que enfim, havia me decidido a escrever, ela ponderou que talvez a época não fosse a mais propícia, afinal, tão perto do Natal, geralmente um período onde as emoções estão mais afloradas, as pessoas ficam mais sensíveis. Mas diferente do que ela pensava, eu levei em consideração que saber sobre o que é a doença, quais os sintomas, como tratar, como ajudar, pode em vez de ser um motivo de tristeza, ser um momento de aprendizado, pode trazer um pouco de alento, de esperança, de mais tranquilidade. Não, não é fácil. Mas quem diz que a VIDA é?
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
RITUAL
Desde a primeira vez que viajamos para Gramado, sem noção de nada, sem roteiro pré-estabelecido, acabamos por criar um ritual, que tratamos de refazer todos os anos.
Para quem não lembra, ou não leu, chegamos debaixo de uma chuva de lavar até a alma. Íamos acampar, barraquinha pequena, nós, campistas realmente de primeira viagem. Desanimamos. Encharcado até o último osso, meu marido conseguiu montá-la, mas depois de armada vimos que seria impossível sequer pensar em tirar um simples cochilo.
Resolvemos então ir ao centro de Canela, quem sabe, Deus ajudaria a encontrar um canto mais seguro para nos abrigar. Ah! que intentada inútil. Mas Deus é pai, não é padrasto e assim, quando já estávamos prontos para retornar ao camping, juntar nossas tralhas e garrar o rumo de volta, o sol abriu, num milagre divino.
Enquanto meu marido ia estacionar o carro, fiquei feito boba, extasiada diante da Catedral de Pedra, como uma japonesa desvairada, fotografando tudo. Vinha andando de costas e, óbvio, não tenho olho atrás da cabeça e não vi que tinha uma guia no meio o caminho. Isso mesmo, uma guia pequena, coisa pouca, mas imensa para um pé desavisado, que se perdeu no vácuo, torceu como uma toalha lavada e me estabaquei feito uma jaca madura.
Juntou gente, eu não sabia se ria ou chorava, só sei que o pé inchou imediatamente, feito um pão esperando para ser assado. Quando meu marido viu a cena, acho que pensou: "pena eu não ter trazido a garrucha do meu pai!" Com toda razão, em um mês era o segundo tombo e o segundo pé invalidado.Acho que as pessoas que gentilmente tentavam me levantar, suja e dolorida, por pouco não me soltaram novamente no chão, tal a malignidade furiosa que vinha junto com meu marido. Se olhar matasse eu teria realmente morrido ali mesmo, nem precisaria de uma garrucha.
Mas ele, como sempre, com toda calma e carinho, me pegou no colo e me levou até o café mais próximo. Ali solicitou gelo, fez compressa, me acarinhou, enxugou minhas lágrimas e pudemos então nos deliciar com uma massa maravilhosa. Estávamos no Empório Canela. Misto de casa antiga, restaurante, loja, livraria e café, tudo junto e misturado num clima delicioso.
Depois de jantar fomos ver os livros e claro, compramos alguns. Evidente que o pé, bem, ele continuava doendo feito uma desgraça, mas não deixei o prazer ir embora.
Desde então, não houve mais tombos, mas nossa primeira atividade ao chegar lá é ir ao Empório Canela. Repetimos sempre a mesma coisa (menos o pé machucado). Comida, literatura e amor. Pode ser melhor?
É nosso ritual íntimo. Só nós dois sabemos seu significado, é quase como um amuleto, muito embora não possa andar com um empório pendurado em uma corrente no pescoço.
Contrariando o que voces podem estar imaginando, nunca compro um romance leve. Sei lá qual a razão, mas sempre vou em busca de algo muito real. Talvez seja para garantir que ali é um sonho, mas o mundo não parou, com todas as suas mazelas. Assim, leio um pouquinho a cada dia, muitas vezes só consigo terminar de ler quando já voltei.
Esse ano fizemos o mesmo, mas passei por todas as estantes e nada me chamava a atenção. Já estava desistindo, quando no meio de vários, encontrei um, solitário, só tinha um exemplar. Já tinha lido alguma coisa sobre ele e nem pensei: agarrei o exemplar, paguei e levei.
Chamava-se "QUEM, EU?" de Fernando Lugozzi.Ele me trouxe uma experiência muito particular, carregada de emoção e voces verão, mudou minha vida.
Através dele vou compartilhar com voces não somente as minhas dores, os meus erros e tão pouco minha intimidade, que já tive a infelicidade de expôr.
Fernando me deu coragem. Coragem para rever sob outro foco a minha vida; coragem para admitir para voces: eu sofro de mal de Parkinson. Coragem para enfrentar mais esse ato da vida e não ter medo de dividir como tenho aceitado.
Espero que voces sejam meus parceiros nessa jornada. Juntos será mais suave a travessia.
Para quem não lembra, ou não leu, chegamos debaixo de uma chuva de lavar até a alma. Íamos acampar, barraquinha pequena, nós, campistas realmente de primeira viagem. Desanimamos. Encharcado até o último osso, meu marido conseguiu montá-la, mas depois de armada vimos que seria impossível sequer pensar em tirar um simples cochilo.
Resolvemos então ir ao centro de Canela, quem sabe, Deus ajudaria a encontrar um canto mais seguro para nos abrigar. Ah! que intentada inútil. Mas Deus é pai, não é padrasto e assim, quando já estávamos prontos para retornar ao camping, juntar nossas tralhas e garrar o rumo de volta, o sol abriu, num milagre divino.
Enquanto meu marido ia estacionar o carro, fiquei feito boba, extasiada diante da Catedral de Pedra, como uma japonesa desvairada, fotografando tudo. Vinha andando de costas e, óbvio, não tenho olho atrás da cabeça e não vi que tinha uma guia no meio o caminho. Isso mesmo, uma guia pequena, coisa pouca, mas imensa para um pé desavisado, que se perdeu no vácuo, torceu como uma toalha lavada e me estabaquei feito uma jaca madura.
Juntou gente, eu não sabia se ria ou chorava, só sei que o pé inchou imediatamente, feito um pão esperando para ser assado. Quando meu marido viu a cena, acho que pensou: "pena eu não ter trazido a garrucha do meu pai!" Com toda razão, em um mês era o segundo tombo e o segundo pé invalidado.Acho que as pessoas que gentilmente tentavam me levantar, suja e dolorida, por pouco não me soltaram novamente no chão, tal a malignidade furiosa que vinha junto com meu marido. Se olhar matasse eu teria realmente morrido ali mesmo, nem precisaria de uma garrucha.
Mas ele, como sempre, com toda calma e carinho, me pegou no colo e me levou até o café mais próximo. Ali solicitou gelo, fez compressa, me acarinhou, enxugou minhas lágrimas e pudemos então nos deliciar com uma massa maravilhosa. Estávamos no Empório Canela. Misto de casa antiga, restaurante, loja, livraria e café, tudo junto e misturado num clima delicioso.
Depois de jantar fomos ver os livros e claro, compramos alguns. Evidente que o pé, bem, ele continuava doendo feito uma desgraça, mas não deixei o prazer ir embora.
Desde então, não houve mais tombos, mas nossa primeira atividade ao chegar lá é ir ao Empório Canela. Repetimos sempre a mesma coisa (menos o pé machucado). Comida, literatura e amor. Pode ser melhor?
É nosso ritual íntimo. Só nós dois sabemos seu significado, é quase como um amuleto, muito embora não possa andar com um empório pendurado em uma corrente no pescoço.
Contrariando o que voces podem estar imaginando, nunca compro um romance leve. Sei lá qual a razão, mas sempre vou em busca de algo muito real. Talvez seja para garantir que ali é um sonho, mas o mundo não parou, com todas as suas mazelas. Assim, leio um pouquinho a cada dia, muitas vezes só consigo terminar de ler quando já voltei.
Esse ano fizemos o mesmo, mas passei por todas as estantes e nada me chamava a atenção. Já estava desistindo, quando no meio de vários, encontrei um, solitário, só tinha um exemplar. Já tinha lido alguma coisa sobre ele e nem pensei: agarrei o exemplar, paguei e levei.
Chamava-se "QUEM, EU?" de Fernando Lugozzi.Ele me trouxe uma experiência muito particular, carregada de emoção e voces verão, mudou minha vida.
Através dele vou compartilhar com voces não somente as minhas dores, os meus erros e tão pouco minha intimidade, que já tive a infelicidade de expôr.
Fernando me deu coragem. Coragem para rever sob outro foco a minha vida; coragem para admitir para voces: eu sofro de mal de Parkinson. Coragem para enfrentar mais esse ato da vida e não ter medo de dividir como tenho aceitado.
Espero que voces sejam meus parceiros nessa jornada. Juntos será mais suave a travessia.
O SOM DO SILÊNCIO
Já em posts muito antigos, de outros blogs que já tive no decorrer desse tempo, muito já falei sobre nossas viagens. Contei em detalhes todas as nossas experiências, ou falta delas, como no caso de nos tornar campistas já com uma idade um pouquinho avançada. Contei dos nossos fracassos, do frio intenso, da enchente que alagou a barraca em plena noite, do meu tombo em frente à Catedral de Canela.
Não vou repetir.
Começo da surpresa, uma das tantas que vivi neste aniversário.
Sou como "rapaz pequeno", como se diz por aqui. Quando chega alguma época, como aniversário, Natal, dias das mães, fico enlouquecida para saber o que vou ganhar de presente. Deixo meu marido quase louco. Quero saber o que é, se é para vestir, para comer, para decorar, para perfumar, se é grande, se é pequeno e por aí vou, até que venço pelo cansaço e não raro acabo por ganhar o presente antes da data prevista. Faço o mesmo quando vou presentear alguém: nunca consigo dar o presente no dia certo, presenteio sempre antes.
Este ano, certa noite, já na cama, comecei minha cantilena. Pergunta dali, pergunta daqui, até descobrir que o meu presente seria para "desfrutar". Pronto, descobri. Meu presente seria ir para Gramado.
Diferente de todos os anos, nosso Natal será em Lages, com a família de minha sogra. Anda havia a possibilidade de irmos após as festas, mas já não encontramos lugar. Tentem nessa época encontrar um quartinho que seja, uma casinha no sopé da serra, um viaduto para lhe abrigar. Tudo está lotado e o pouco que sobra, bem, o bolso não pode pagar.Nosso camping está em reforma, então começamos a batalha de achar um hotel ou uma pousada. Garanto, não foi fácil. Por fim, encontramos uma pousada em Nova Petrópolis, cidadezinha que fica a trinta quilômetros de Gramado.
Não era uma perspectiva muito agradável. Já havíamos passado por lá, não achamos nada de interessante; cidadezinha anônima que se achava no direito de ser chamada de "jardim da serra" e a pousada também não parecia ter maiores atrativos, além do que, teríamos que nos deslocar todos os dias até Gramado.
Ai Jesus, quanto engano!! Como nossos olhos podem, por vezes, enxergar apenas a superficialidade das coisas.
A primeira impressão que tivemos ao chegar, foi que tínhamos ido parar na Alemanha. A cidade é um encanto. Não, lá não existe a exuberância de Gramado ou Canela, mas tem a sensação de abarcar em si o total conceito da palavra PAZ.
Não há multidões; poucos turistas vão para lá. Sim, a cidade está enfeitada para o Natal, mas com discrição, delicadamente, como tudo por lá, aliás. Achei sem querer a definição para descrever Nova Petrópolis: suavidade.
Na Pousada, chamada de Mika's, uma casa em estilo alemão (não podia ser diferente), não fomos recebidos por funcionários treinados por alguma escola de hotelaria. Fomos acolhidos, por uma moça simpática, genuinamente agradável. Havia calor em seu acolhimento. Era Magali.
Não havia luxo, mas tinha todo o necessário para uma estadia tranquila.
Fica no fim de uma rua de nome alemão (claro!), com um bosque ao lado e é administrada pela família.
Pertinho da área central, portanto podíamos flanar a pé pelas ruas ou quem sabe pegar uma bicicleta oferecida pela pousada, fizemos passeios inesquecíveis pelas redondezas.
Sim, eu me redimo: Nova Petrópolis é verdadeiramente o jardim da serra. Para onde você olhar, o que verá? Flores, muitas flores.
Bem no coração da cidade, fica o Parque do Imigrante. Algumas lojinhas, um museu, um restaurante típico, um lago cheio de carpas obesas, um bosque e um bandinha tocando músicas alemãs.
Há também uma calmaria de vozes, a impressão que se tem é que ali até o silêncio da natureza é respeitado. Acho que é para permitir que os pássaros apresentem os seus shows.
Nos permitimos a proeza de apenas "ficar", de sentir, de vivenciar a tão esquecida paz.
Certa tarde, enquanto meu marido descansava, saí sem rumo. Fazia bastante calor durante o dia.
De repente fui tomada de um susto: não sabia onde estava. Não, não estava perdida, estava em outro mundo. No meio de uma cidade, não consegui ouvir um só barulho. Voces sabem, nossos ouvidos não estão mais acostumados a isso. Pensei: fui abduzida, perdi o senso da realidade. Nem carros, nem buzinas, tão pouco gralhas humanas falando em altos berros. Nada. Som? Só do silêncio.
Gente, há quanto tempo eu não ouvia o silêncio? É algo tão estranho que parece que você caiu num vácuo, dá até um pouco de medo ouvir que você respira, que seu coração bate.
Outro susto: ainda existe gentileza neste planeta. Em qualquer lugar que você entre, lhe acolhem com alegria, com calor, com sorrisos sinceros. Conversam, querem saber de você, não para fazer fofocas, mas para saber quem você de fato é e a conversa fica tão boa que você acaba por esquecer o que o levou até lá.
Na Pousada não era diferente. Poucas pessoas trabalhando, mas tudo em ordem, limpo, acolhedor.
Simone, acho que a proprietária, uma querida. Vai casar essa semana, com um austríaco que acredito, já deve ter chegado, para sua felicidade. Acho que ela só não compreendeu como é que eu, sendo de origem alemã não falo quase nada do idioma. Penso que foi realmente uma pena meu pai não nos ter ensinado, porque daí sim, eu estaria realmente no meu lugar no mundo.
Não, por favor, não pensem que desdenho o lugar onde vivo. Gosto daqui, nasci e cresci em Santa Catarina e morei grande parte da vida em Blumenau. Há anos estou em Balneário Camboriú. Sim, também tem seus muitos encantos, mas creio que não combina mais com a introversão que a maturidade vem trazendo gradualmente.
QUERO OUVIR O SOM DO SILÊNCIO!!!!
Quero poder andar pelas ruas sem medo de ser assaltada, de ficar presa em congestionamentos, de esbarrar em hordas de turistas que infelizmente detonam com minha cidade. Aqui, principalmente no verão, a cidade cheira a lixo, a xixi, a restos de cervejas e as ratazanas à noite, disputam lugar com você nas areias da praia.
Lá, eu só tinha que disputar espaço com alguns sapos coloridos, que todas as noites nos esperavam no portão. Sapos educados, diga-se de passagem. Lindamente salpicados de amarelo (seriam sardas?), ficavam imóveis, em nenhum momento tive medo que pulassem nos meus pés. Não sei em que brejo estudaram, mas eram tão gentis que nem coaxavam para não perturbar nosso sono.
No dia do meu aniversário ganhei um strudel (sei que se escreve diferente, mas não sei escrever em alemão), um doce típico, de maçã, no café da manhã e de noite, quando voltamos de Gramado, em cima da cama havia dois pacotinhos de bolachas caseiras e um cartão carinhoso me desejando felicidades. Ali tive a certeza que a DELICADEZA mudou-se definitivamente para Nova Petrópolis!
Lendo o que escrevo posso ter dado a impressão e que a cidade não oferece outras atrações. Outro engano. Tem um bom comércio e um restaurante divino, o Colina Verde, que como já diz o próprio nome, fica numa colina, óbvio, de onde se tem uma vista deslumbrante e serve uma comida alemã, lógico, deliciosa. Recomendo, mas cuidado, faça antes sua dieta de faquir. Minha descendência germânica se atracou com o chucrute, com o eisebein, com as salsichas, tudo regado a um suco de uva rosé simplesmente inexplicável. Podia tomar um barril inteiro.
Passei quatro dias de prazer absoluto e me entristeci na hora da partida. Queria ficar. Vou ficar, porque um dia, após nossa aposentadoria é para lá que iremos.
Ah! e ainda neva!!! Pode ser melhor???
PS: Simone e Magali, nosso muito obrigada. Voces não existem! Ah! por favor, mande as fotos do casamento e tenha uma lua de mel maravilhosa. Beijos e até o ano que vem. Nos esperem, já deixem nosso quarto reservado!
Simone e eu, na hora da partida!
Não vou repetir.
Começo da surpresa, uma das tantas que vivi neste aniversário.
Sou como "rapaz pequeno", como se diz por aqui. Quando chega alguma época, como aniversário, Natal, dias das mães, fico enlouquecida para saber o que vou ganhar de presente. Deixo meu marido quase louco. Quero saber o que é, se é para vestir, para comer, para decorar, para perfumar, se é grande, se é pequeno e por aí vou, até que venço pelo cansaço e não raro acabo por ganhar o presente antes da data prevista. Faço o mesmo quando vou presentear alguém: nunca consigo dar o presente no dia certo, presenteio sempre antes.
Este ano, certa noite, já na cama, comecei minha cantilena. Pergunta dali, pergunta daqui, até descobrir que o meu presente seria para "desfrutar". Pronto, descobri. Meu presente seria ir para Gramado.
Diferente de todos os anos, nosso Natal será em Lages, com a família de minha sogra. Anda havia a possibilidade de irmos após as festas, mas já não encontramos lugar. Tentem nessa época encontrar um quartinho que seja, uma casinha no sopé da serra, um viaduto para lhe abrigar. Tudo está lotado e o pouco que sobra, bem, o bolso não pode pagar.Nosso camping está em reforma, então começamos a batalha de achar um hotel ou uma pousada. Garanto, não foi fácil. Por fim, encontramos uma pousada em Nova Petrópolis, cidadezinha que fica a trinta quilômetros de Gramado.
Não era uma perspectiva muito agradável. Já havíamos passado por lá, não achamos nada de interessante; cidadezinha anônima que se achava no direito de ser chamada de "jardim da serra" e a pousada também não parecia ter maiores atrativos, além do que, teríamos que nos deslocar todos os dias até Gramado.
Ai Jesus, quanto engano!! Como nossos olhos podem, por vezes, enxergar apenas a superficialidade das coisas.
A primeira impressão que tivemos ao chegar, foi que tínhamos ido parar na Alemanha. A cidade é um encanto. Não, lá não existe a exuberância de Gramado ou Canela, mas tem a sensação de abarcar em si o total conceito da palavra PAZ.
Não há multidões; poucos turistas vão para lá. Sim, a cidade está enfeitada para o Natal, mas com discrição, delicadamente, como tudo por lá, aliás. Achei sem querer a definição para descrever Nova Petrópolis: suavidade.
Na Pousada, chamada de Mika's, uma casa em estilo alemão (não podia ser diferente), não fomos recebidos por funcionários treinados por alguma escola de hotelaria. Fomos acolhidos, por uma moça simpática, genuinamente agradável. Havia calor em seu acolhimento. Era Magali.
Não havia luxo, mas tinha todo o necessário para uma estadia tranquila.
Fica no fim de uma rua de nome alemão (claro!), com um bosque ao lado e é administrada pela família.
Pertinho da área central, portanto podíamos flanar a pé pelas ruas ou quem sabe pegar uma bicicleta oferecida pela pousada, fizemos passeios inesquecíveis pelas redondezas.
Sim, eu me redimo: Nova Petrópolis é verdadeiramente o jardim da serra. Para onde você olhar, o que verá? Flores, muitas flores.
Bem no coração da cidade, fica o Parque do Imigrante. Algumas lojinhas, um museu, um restaurante típico, um lago cheio de carpas obesas, um bosque e um bandinha tocando músicas alemãs.
Há também uma calmaria de vozes, a impressão que se tem é que ali até o silêncio da natureza é respeitado. Acho que é para permitir que os pássaros apresentem os seus shows.
Nos permitimos a proeza de apenas "ficar", de sentir, de vivenciar a tão esquecida paz.
Certa tarde, enquanto meu marido descansava, saí sem rumo. Fazia bastante calor durante o dia.
De repente fui tomada de um susto: não sabia onde estava. Não, não estava perdida, estava em outro mundo. No meio de uma cidade, não consegui ouvir um só barulho. Voces sabem, nossos ouvidos não estão mais acostumados a isso. Pensei: fui abduzida, perdi o senso da realidade. Nem carros, nem buzinas, tão pouco gralhas humanas falando em altos berros. Nada. Som? Só do silêncio.
Gente, há quanto tempo eu não ouvia o silêncio? É algo tão estranho que parece que você caiu num vácuo, dá até um pouco de medo ouvir que você respira, que seu coração bate.
Outro susto: ainda existe gentileza neste planeta. Em qualquer lugar que você entre, lhe acolhem com alegria, com calor, com sorrisos sinceros. Conversam, querem saber de você, não para fazer fofocas, mas para saber quem você de fato é e a conversa fica tão boa que você acaba por esquecer o que o levou até lá.
Na Pousada não era diferente. Poucas pessoas trabalhando, mas tudo em ordem, limpo, acolhedor.
Simone, acho que a proprietária, uma querida. Vai casar essa semana, com um austríaco que acredito, já deve ter chegado, para sua felicidade. Acho que ela só não compreendeu como é que eu, sendo de origem alemã não falo quase nada do idioma. Penso que foi realmente uma pena meu pai não nos ter ensinado, porque daí sim, eu estaria realmente no meu lugar no mundo.
Não, por favor, não pensem que desdenho o lugar onde vivo. Gosto daqui, nasci e cresci em Santa Catarina e morei grande parte da vida em Blumenau. Há anos estou em Balneário Camboriú. Sim, também tem seus muitos encantos, mas creio que não combina mais com a introversão que a maturidade vem trazendo gradualmente.
QUERO OUVIR O SOM DO SILÊNCIO!!!!
Quero poder andar pelas ruas sem medo de ser assaltada, de ficar presa em congestionamentos, de esbarrar em hordas de turistas que infelizmente detonam com minha cidade. Aqui, principalmente no verão, a cidade cheira a lixo, a xixi, a restos de cervejas e as ratazanas à noite, disputam lugar com você nas areias da praia.
Lá, eu só tinha que disputar espaço com alguns sapos coloridos, que todas as noites nos esperavam no portão. Sapos educados, diga-se de passagem. Lindamente salpicados de amarelo (seriam sardas?), ficavam imóveis, em nenhum momento tive medo que pulassem nos meus pés. Não sei em que brejo estudaram, mas eram tão gentis que nem coaxavam para não perturbar nosso sono.
No dia do meu aniversário ganhei um strudel (sei que se escreve diferente, mas não sei escrever em alemão), um doce típico, de maçã, no café da manhã e de noite, quando voltamos de Gramado, em cima da cama havia dois pacotinhos de bolachas caseiras e um cartão carinhoso me desejando felicidades. Ali tive a certeza que a DELICADEZA mudou-se definitivamente para Nova Petrópolis!
Lendo o que escrevo posso ter dado a impressão e que a cidade não oferece outras atrações. Outro engano. Tem um bom comércio e um restaurante divino, o Colina Verde, que como já diz o próprio nome, fica numa colina, óbvio, de onde se tem uma vista deslumbrante e serve uma comida alemã, lógico, deliciosa. Recomendo, mas cuidado, faça antes sua dieta de faquir. Minha descendência germânica se atracou com o chucrute, com o eisebein, com as salsichas, tudo regado a um suco de uva rosé simplesmente inexplicável. Podia tomar um barril inteiro.
Passei quatro dias de prazer absoluto e me entristeci na hora da partida. Queria ficar. Vou ficar, porque um dia, após nossa aposentadoria é para lá que iremos.
Ah! e ainda neva!!! Pode ser melhor???
PS: Simone e Magali, nosso muito obrigada. Voces não existem! Ah! por favor, mande as fotos do casamento e tenha uma lua de mel maravilhosa. Beijos e até o ano que vem. Nos esperem, já deixem nosso quarto reservado!
Simone e eu, na hora da partida!
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
FUI AO PARAÍSO E VOLTEI! SEM PASSAPORTE!!!
Tanto tempo! Andava meio sem assunto, ou talvez tenha sido só preguiça mesmo ou ainda quem sabe, uma irritação vinda não sei de onde que sempre precede a data do meu aniversário. Dizem que é o tal inferno astral. Pode ser. Será que é pela sensação de ter vivido mais um ano e, portanto, ter marcado com um X no calendário da vida e me dado conta que já vivi mais da metade do esperado?
O fato é que novembro é sempre um mês bem esquisito para mim, vivo realmente nas profundezas do inferno, nem eu me aguento. Tenho vontade de me pôr à venda ou fazer uma doação de mim mesma, mas duvido que tenha alguém que se interesse. Nem de graça, tão impossível eu fico! Mas enfim, tudo acaba no dia 29. Como num passe de mágica, volto a ser quem era.
Geralmente não comemoro mais meus aniversários, quando muito, um almoço em algum restaurante, uns presentes daqui, uns abraços dali e pronto, o dia passa. Mas esse ano, ah! esse ano! Foi meu melhor aniversário, e olhem que já fiz muitos. Cinquenta e sete anos não é pouco não.
Já tem cinco anos que passamos as festas de Natal e Ano Novo em Gramado. Somos convencionais demais? Ir sempre para um mesmo lugar? Por que não variar? Até pensamos, ensaiamos outros roteiros, mas no fim é para a Serra Gaúcha que acabamos indo, por um motivo muito simples: baixa em mim e em meu marido um espírito infantil e tudo o que desejamos é estar na terra brasileira do Papai Noel.
Sei que existe pelo mundo lugares onde o Natal deve parecer um sonho. Nova York, com certeza. Mas nada, nada mesmo se compara ao que acontece aqui no sul do meu país.
As cidades da região, Gramado, Canela e Nova Petrópolis parecem ter saído de um conto de fadas. Tem-se a sensação de se estar na Alemanha, talvez. Nunca conheci, pelo menos aqui no Brasil, nada parecido. Tudo é LIMPO! Com milhares de pessoas transitando, não se vê um papelito nas calçadas.
Sinal de trânsito, prá quê? Aliás pela primeira vez encontrei um, solitário em Nova Petrópolis. Coitado, me deu pena, ali, tão perdido, ninguém dá muita bola para ele.
A impressão que tenho é que a palavra de ordem naquela região é civilidade. Voces podem até não acreditar, mas os turistas ficam tão educados que parecem ter estudado em alguma severa escola da Suiça.
Basta colocar um pezinho na rua que todos os carros param para você atravessar. Lá as pessoas são reis, e os carros, súditos, muito ao contrário daqui.
Decoração? Deus meu, não existe um só pedacinho sem uma referência natalina. Mas não são enfeites quaisquer, destes que se compra em lojas de R$ 1,99. Tudo é luxo, é requinte, é perfeito. Algo parecido penso que só na Disney. Diversão? Imagine aquilo que sua imaginação não alcança e multiplique por 1000. Não a diversão baladeira, mas aquela pura, genuína, onde você não sabe onde começa o sonho e onde ficou a realidade.
Paisagens? Pensem num cartão postal, daqueles antigos, que se mandava quando ainda não existia a internet. Vales, montanhas, cachoeiras, e muitas, muitas hortênsias, azulando tudo, numa mistura louca de centenas de tons azuis e rosa também, entremeando o verde que reveste tudo tal qual um tapete. Pensem num quadro impressionista. É lá. Com certeza van Gogh e Monet ficariam extasiados.
Comida? Fiquem pelo menos uns quinze dias de jejum absoluto. Os restaurantes são infinitos, de todos os tipos, para todos os bolsos, todos os gostos. Só vão para lá depois de terem passado por uma temporada de faquir, porque com certeza, todo mundo engorda um pouquinho (ou muito, depende do caso). Não bastasse voces se sentarem à mesa e desfrutarem qualquer tipo de comida ( os cardápios oferecem acepipes de todas as partes do mundo), pensem agora nos chocolates. Até cascata de chocolate tem. Uma loja mais linda que a outra, o perfume invadindo tudo e você não sabe se compra ou se come só com o olhar, até porque a decoração das lojas, bem, não tem como descrever, é magia pura.
À noite vira dia, tal a profusão de luzes, em todos os lugares. Parece que você está no céu, no meio de alguma constelação muito, mas muito brilhante mesmo, de ofuscar as vistas. Led pouca é bobagem.
E não esqueçam, as músicas natalinas, aquelas que voces cantavam nas noites de Natal, soando em seus ouvidos, por todas as ruas.
Nem vou falar aqui sobre os parques, os shows, as centenas de atrações, afinal não sou guia turístico, mas saibam, levem lenços, porque tudo emociona e muitas vezes choramos feito crianças ao som de Noite Feliz. Eu sempre choro, e muito, porque lembro dos natais quando ainda tinha uma coisa que se dissolveu nas brumas da discórdia: família.
Sim, lá é o paraíso e esse foi o presente de aniversário que meu marido me deu. Emoção à flor da pele em cada segundo. Encantamento, essa é a palavra. Só quem ama muito sabe presentear a pessoa amada com tamanha profundidade.
Meu inferno astral? Bom, este deixei para trás quando entrei no carro e começamos a viagem.
Agora é vida que segue, tem uma casa me esperando para uma faxina. Mas não pensem que acabou, é só um tempo, pois ainda tenho muito o que contar, agora sobre o lugar onde ficamos, a cidade de Nova Petrópolis. Lá, entendi o significado da expressão "paz na terra e aos homens de boa vontade".
Antes de terminar, preciso, preciso muito mandar um caloroso abraço às queridas Simone e Magali, da pousada Mikas. Voces sabem o que é calor humano? Não??? Então vão até lá.
Falarei sobre isto no próximo post. Saiam daí não, é só o tempo de virar gata borralheira, limpar o castelo e depois voltar como Cinderela para contar como foi meu baile de aniversário, que acabou a meia noite, mas não se desesperem, não perdi o meu sapatinho de cristal. Ele veio guardado num porta jóias muito especial: meu coração.
O fato é que novembro é sempre um mês bem esquisito para mim, vivo realmente nas profundezas do inferno, nem eu me aguento. Tenho vontade de me pôr à venda ou fazer uma doação de mim mesma, mas duvido que tenha alguém que se interesse. Nem de graça, tão impossível eu fico! Mas enfim, tudo acaba no dia 29. Como num passe de mágica, volto a ser quem era.
Geralmente não comemoro mais meus aniversários, quando muito, um almoço em algum restaurante, uns presentes daqui, uns abraços dali e pronto, o dia passa. Mas esse ano, ah! esse ano! Foi meu melhor aniversário, e olhem que já fiz muitos. Cinquenta e sete anos não é pouco não.
Já tem cinco anos que passamos as festas de Natal e Ano Novo em Gramado. Somos convencionais demais? Ir sempre para um mesmo lugar? Por que não variar? Até pensamos, ensaiamos outros roteiros, mas no fim é para a Serra Gaúcha que acabamos indo, por um motivo muito simples: baixa em mim e em meu marido um espírito infantil e tudo o que desejamos é estar na terra brasileira do Papai Noel.
Sei que existe pelo mundo lugares onde o Natal deve parecer um sonho. Nova York, com certeza. Mas nada, nada mesmo se compara ao que acontece aqui no sul do meu país.
As cidades da região, Gramado, Canela e Nova Petrópolis parecem ter saído de um conto de fadas. Tem-se a sensação de se estar na Alemanha, talvez. Nunca conheci, pelo menos aqui no Brasil, nada parecido. Tudo é LIMPO! Com milhares de pessoas transitando, não se vê um papelito nas calçadas.
Sinal de trânsito, prá quê? Aliás pela primeira vez encontrei um, solitário em Nova Petrópolis. Coitado, me deu pena, ali, tão perdido, ninguém dá muita bola para ele.
A impressão que tenho é que a palavra de ordem naquela região é civilidade. Voces podem até não acreditar, mas os turistas ficam tão educados que parecem ter estudado em alguma severa escola da Suiça.
Basta colocar um pezinho na rua que todos os carros param para você atravessar. Lá as pessoas são reis, e os carros, súditos, muito ao contrário daqui.
Decoração? Deus meu, não existe um só pedacinho sem uma referência natalina. Mas não são enfeites quaisquer, destes que se compra em lojas de R$ 1,99. Tudo é luxo, é requinte, é perfeito. Algo parecido penso que só na Disney. Diversão? Imagine aquilo que sua imaginação não alcança e multiplique por 1000. Não a diversão baladeira, mas aquela pura, genuína, onde você não sabe onde começa o sonho e onde ficou a realidade.
Paisagens? Pensem num cartão postal, daqueles antigos, que se mandava quando ainda não existia a internet. Vales, montanhas, cachoeiras, e muitas, muitas hortênsias, azulando tudo, numa mistura louca de centenas de tons azuis e rosa também, entremeando o verde que reveste tudo tal qual um tapete. Pensem num quadro impressionista. É lá. Com certeza van Gogh e Monet ficariam extasiados.
Comida? Fiquem pelo menos uns quinze dias de jejum absoluto. Os restaurantes são infinitos, de todos os tipos, para todos os bolsos, todos os gostos. Só vão para lá depois de terem passado por uma temporada de faquir, porque com certeza, todo mundo engorda um pouquinho (ou muito, depende do caso). Não bastasse voces se sentarem à mesa e desfrutarem qualquer tipo de comida ( os cardápios oferecem acepipes de todas as partes do mundo), pensem agora nos chocolates. Até cascata de chocolate tem. Uma loja mais linda que a outra, o perfume invadindo tudo e você não sabe se compra ou se come só com o olhar, até porque a decoração das lojas, bem, não tem como descrever, é magia pura.
À noite vira dia, tal a profusão de luzes, em todos os lugares. Parece que você está no céu, no meio de alguma constelação muito, mas muito brilhante mesmo, de ofuscar as vistas. Led pouca é bobagem.
E não esqueçam, as músicas natalinas, aquelas que voces cantavam nas noites de Natal, soando em seus ouvidos, por todas as ruas.
Nem vou falar aqui sobre os parques, os shows, as centenas de atrações, afinal não sou guia turístico, mas saibam, levem lenços, porque tudo emociona e muitas vezes choramos feito crianças ao som de Noite Feliz. Eu sempre choro, e muito, porque lembro dos natais quando ainda tinha uma coisa que se dissolveu nas brumas da discórdia: família.
Sim, lá é o paraíso e esse foi o presente de aniversário que meu marido me deu. Emoção à flor da pele em cada segundo. Encantamento, essa é a palavra. Só quem ama muito sabe presentear a pessoa amada com tamanha profundidade.
Meu inferno astral? Bom, este deixei para trás quando entrei no carro e começamos a viagem.
Agora é vida que segue, tem uma casa me esperando para uma faxina. Mas não pensem que acabou, é só um tempo, pois ainda tenho muito o que contar, agora sobre o lugar onde ficamos, a cidade de Nova Petrópolis. Lá, entendi o significado da expressão "paz na terra e aos homens de boa vontade".
Antes de terminar, preciso, preciso muito mandar um caloroso abraço às queridas Simone e Magali, da pousada Mikas. Voces sabem o que é calor humano? Não??? Então vão até lá.
Falarei sobre isto no próximo post. Saiam daí não, é só o tempo de virar gata borralheira, limpar o castelo e depois voltar como Cinderela para contar como foi meu baile de aniversário, que acabou a meia noite, mas não se desesperem, não perdi o meu sapatinho de cristal. Ele veio guardado num porta jóias muito especial: meu coração.
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
RODEI MINHA BAIANA
Não sei de onde saiu esta expressão, mas de vez em quando, ela me serve muito bem. Gosto muito também de dizer que "subi nos saltos" ou ainda, "que me espalhei".
Tudo isso serve para indicar que meu espírito foi tomado por um demoniozinho, que abri a jaula e deixei a fera sair. É quando fico braba, indignada,revoltada. Viro monstro,Não meço palavras, nem tom de voz e ai do coitado que cruzar o meu caminho, é capaz de levar uma sapatada na cabeça. A sorte é que geralmente ando de salto baixo.
Reconheço, já fui muito pior, meu nível de tolerância ( e não tem muito tempo) era um grande e redondo zero. Hoje, admito. já alcanço o nível 5, quem sabe, seis.
Mas juro por todos os santos, venho tentando melhorar, ser mais paciente, mais gentil, mais compreensiva com as falhas, má-vontades, preguiças ou grosserias alheias.
Estou tentando ser mais zen, mas ontem, acho que nem um monge do Tibet conseguiria manter a calma. Talvez ele conseguisse se ficasse por horas recitando um mantra de exaltação à paciência.
No início da semana fui ao shopping e entrei nas Lojas Marisas para comprar umas lingeries. Acabei deixando as calcinhas de lado e me encantei com um vestidinho, coisa modesta, desses de se andar em casa, ir à padaria. Pois bem, comprei. Custou a fortuna de R$ 19.99. Como estava com pressa, (jamais saiam com seus maridos para ir ao shopping) não provei o dito cujo. Acreditei que os três quilos que já perdi me dariam o presente de comprar uma roupa tamanho M. Ai dó! Chegando em casa, vesti o bichinho e fiquei parecendo um sacolé de limão.
"No problem", vamos ao shopping e trocamos, tão fácil trocar alguma coisa, afinal, não tinha tirado a etiqueta, tinha a nota fiscal e até a embalagem.
Aproveitei, já que estava lá, para comprar as peças íntimas que estava precisando. Fui então para a fila das caixas. Loja cheia, horário de almoço e só um caixa atendendo. Chegando a minha vez, fiquei sabendo que para efetuar a troca teria que ir ao segundo andar, havia que fazer um vale-troca. No percurso até a escada já avistei uma camisolinha que era o mesmo preço do vestido. Beleza, nem precisava de nenhuma confusão, era só devolver uma e pegar outra.
Lá em cima, outra surpresa: só uma funcionária que estava atendendo uma "velhinha", tudo por causa de uma prestação de, pasmem,. R$ 12.00.
A dita mulher virou e revirou a bolsa, sacou umas trezentas carteirinhas, uns mil boletos. Ela falando, contando seus problemas para a funcionária enquanto tentava encontrar o quê, eu não sei.
Nessas alturas eu já conhecia toda a história pregressa da senhorinha.
Já cansada, perguntei se não havia outra funcionária. Havia e ela estava chegando. Chegando a passos de cágado, mas chegando.
Bom, pensei, então agora vai. Que nada, a sujeita ficou a escutar o lero-lero da terceira idade e eu feito uma pateta, grudada no chão.
Olhei para a parede e lá estava um cartaz que dizia: "FAZER TROCAS É MUITO FÁCIL NAS LOJAS MARISA". Fácil para quem, cara pálida?
Quando por fim a velhinha se deu por satisfeita, a funcionária "maria-mole" resolveu me atender.
"É só preencher um formulário". SÓ????? Queriam saber tudo a meu respeito, documentos, endereço, profissão, o que eu havia almoçado, a cor da minha calcinha, etc...etc... e etc...
Nesse ponto minha cara já estava pink e uma baba branca e gosmenta começava a sair dos cantos da minha boca.
Enfim consegui o tal vale e ao me dirigir ao caixa já peguei a camisola.
Novamente outra velhinha na minha frente e de novo, encrencada com carteiras, bolsinhas, porta-moedas, zilhões de papeis. Pressa? Realmente, a criatura não conhecia a palavra. Respeito por quem está na fila atrás de você? Prá quê? Você que espere, ora bolas!
O demônio estava começando a sair de mim e o primeiro sinal é uma coceirinha na cabeça; o segundo sinal é a queda de meus cabelos e o terceiro, bem esse só uma peruca daria jeito.
Antes que eu arrancasse minhas madeixas, perguntei para a velhinha se ela trabalhava. Não, não trabalhava. Mas eu estava cheia de compromissos e a fila atrás de mim só aumentava.
Depois dela ter espalhado tudo o que havia em sua bolsa sobre o balcão resolveram chamar outra funcionária, a mesma maria-mole que veio com os mesmos passos de cágado e a mesma disposição e boa vontade. De pink fui ficando rubra, principalmente porque a criatura queria saber se era para debitar a minha troca no cartão, junto com o que eu havia comprado.
COMO ASSIM??? Já estava pago era só cobrar as outras peças. Eu já estava fazendo esculturas no meu cabelo, peguei umas tamancas, subi nos saltos e rodei a baiana, gritando a plenos pulmões.
CHAMA O GERENTE DESSA BOSTA!!! Minha educação, minha gentileza, minha tolerância tinham ido para o esgoto mesmo, então meu vocabulário poderia fazer parte da cena.
Larguei tudo, falei um monte de impropérios, inclusive que aquela pamonha, que trabalhava com tanto gosto, se eu tivesse trabalhado como ela, hoje não teria dinheiro para comprar um grampo.
Saí da loja feito um furacão, sem levar nada, mas no caminho pensei: a camisola já está paga. Voltei, me meti no meio da fila, cacei minha camisola e com ela debaixo do braço, ganhei o corredor do shopping literalmente espumando de raiva. Cachorro com hidrofobia perto de mim era pouco.
Por que escrevo sobre isso? Porque eu trato todo mundo com respeito. Se estou numa fila, já tenho em mãos o dinheiro ou cartão ou documentos, tudo para não atrasar quem está atrás de mim.
Mas ninguém conhece mais essa palavra ou esse gesto. A única linguagem que as pessoas parecem compreender é a da baixaria. Sei que é feio, mas paciência tem limites e educação também
De tudo, entre outras coisas, valeu o aprendizado: LOJAS MARISA NUNCA MAIS!!!
Vão atender mal assim lá nos quintos dos infernos.
Tudo isso serve para indicar que meu espírito foi tomado por um demoniozinho, que abri a jaula e deixei a fera sair. É quando fico braba, indignada,revoltada. Viro monstro,Não meço palavras, nem tom de voz e ai do coitado que cruzar o meu caminho, é capaz de levar uma sapatada na cabeça. A sorte é que geralmente ando de salto baixo.
Reconheço, já fui muito pior, meu nível de tolerância ( e não tem muito tempo) era um grande e redondo zero. Hoje, admito. já alcanço o nível 5, quem sabe, seis.
Mas juro por todos os santos, venho tentando melhorar, ser mais paciente, mais gentil, mais compreensiva com as falhas, má-vontades, preguiças ou grosserias alheias.
Estou tentando ser mais zen, mas ontem, acho que nem um monge do Tibet conseguiria manter a calma. Talvez ele conseguisse se ficasse por horas recitando um mantra de exaltação à paciência.
No início da semana fui ao shopping e entrei nas Lojas Marisas para comprar umas lingeries. Acabei deixando as calcinhas de lado e me encantei com um vestidinho, coisa modesta, desses de se andar em casa, ir à padaria. Pois bem, comprei. Custou a fortuna de R$ 19.99. Como estava com pressa, (jamais saiam com seus maridos para ir ao shopping) não provei o dito cujo. Acreditei que os três quilos que já perdi me dariam o presente de comprar uma roupa tamanho M. Ai dó! Chegando em casa, vesti o bichinho e fiquei parecendo um sacolé de limão.
"No problem", vamos ao shopping e trocamos, tão fácil trocar alguma coisa, afinal, não tinha tirado a etiqueta, tinha a nota fiscal e até a embalagem.
Aproveitei, já que estava lá, para comprar as peças íntimas que estava precisando. Fui então para a fila das caixas. Loja cheia, horário de almoço e só um caixa atendendo. Chegando a minha vez, fiquei sabendo que para efetuar a troca teria que ir ao segundo andar, havia que fazer um vale-troca. No percurso até a escada já avistei uma camisolinha que era o mesmo preço do vestido. Beleza, nem precisava de nenhuma confusão, era só devolver uma e pegar outra.
Lá em cima, outra surpresa: só uma funcionária que estava atendendo uma "velhinha", tudo por causa de uma prestação de, pasmem,. R$ 12.00.
A dita mulher virou e revirou a bolsa, sacou umas trezentas carteirinhas, uns mil boletos. Ela falando, contando seus problemas para a funcionária enquanto tentava encontrar o quê, eu não sei.
Nessas alturas eu já conhecia toda a história pregressa da senhorinha.
Já cansada, perguntei se não havia outra funcionária. Havia e ela estava chegando. Chegando a passos de cágado, mas chegando.
Bom, pensei, então agora vai. Que nada, a sujeita ficou a escutar o lero-lero da terceira idade e eu feito uma pateta, grudada no chão.
Olhei para a parede e lá estava um cartaz que dizia: "FAZER TROCAS É MUITO FÁCIL NAS LOJAS MARISA". Fácil para quem, cara pálida?
Quando por fim a velhinha se deu por satisfeita, a funcionária "maria-mole" resolveu me atender.
"É só preencher um formulário". SÓ????? Queriam saber tudo a meu respeito, documentos, endereço, profissão, o que eu havia almoçado, a cor da minha calcinha, etc...etc... e etc...
Nesse ponto minha cara já estava pink e uma baba branca e gosmenta começava a sair dos cantos da minha boca.
Enfim consegui o tal vale e ao me dirigir ao caixa já peguei a camisola.
Novamente outra velhinha na minha frente e de novo, encrencada com carteiras, bolsinhas, porta-moedas, zilhões de papeis. Pressa? Realmente, a criatura não conhecia a palavra. Respeito por quem está na fila atrás de você? Prá quê? Você que espere, ora bolas!
O demônio estava começando a sair de mim e o primeiro sinal é uma coceirinha na cabeça; o segundo sinal é a queda de meus cabelos e o terceiro, bem esse só uma peruca daria jeito.
Antes que eu arrancasse minhas madeixas, perguntei para a velhinha se ela trabalhava. Não, não trabalhava. Mas eu estava cheia de compromissos e a fila atrás de mim só aumentava.
Depois dela ter espalhado tudo o que havia em sua bolsa sobre o balcão resolveram chamar outra funcionária, a mesma maria-mole que veio com os mesmos passos de cágado e a mesma disposição e boa vontade. De pink fui ficando rubra, principalmente porque a criatura queria saber se era para debitar a minha troca no cartão, junto com o que eu havia comprado.
COMO ASSIM??? Já estava pago era só cobrar as outras peças. Eu já estava fazendo esculturas no meu cabelo, peguei umas tamancas, subi nos saltos e rodei a baiana, gritando a plenos pulmões.
CHAMA O GERENTE DESSA BOSTA!!! Minha educação, minha gentileza, minha tolerância tinham ido para o esgoto mesmo, então meu vocabulário poderia fazer parte da cena.
Larguei tudo, falei um monte de impropérios, inclusive que aquela pamonha, que trabalhava com tanto gosto, se eu tivesse trabalhado como ela, hoje não teria dinheiro para comprar um grampo.
Saí da loja feito um furacão, sem levar nada, mas no caminho pensei: a camisola já está paga. Voltei, me meti no meio da fila, cacei minha camisola e com ela debaixo do braço, ganhei o corredor do shopping literalmente espumando de raiva. Cachorro com hidrofobia perto de mim era pouco.
Por que escrevo sobre isso? Porque eu trato todo mundo com respeito. Se estou numa fila, já tenho em mãos o dinheiro ou cartão ou documentos, tudo para não atrasar quem está atrás de mim.
Mas ninguém conhece mais essa palavra ou esse gesto. A única linguagem que as pessoas parecem compreender é a da baixaria. Sei que é feio, mas paciência tem limites e educação também
De tudo, entre outras coisas, valeu o aprendizado: LOJAS MARISA NUNCA MAIS!!!
Vão atender mal assim lá nos quintos dos infernos.
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